Impasse revela duas Franças: enquanto
a minoria protesta e faz greve, a maioria
silenciosa trabalha e paga os impostos
Antonio Ribeiro, de Paris
Ruth Fremson/NYT |
A polícia intervém em Paris: protestos em 250 cidades e greves localizadas |
Os franceses dormem há quatro décadas com duas convicções. A de que depois da noite virá o dia e a de que, com ele, haverá uma manifestação nas ruas de Paris. Na semana passada, mais de 1 milhão de estudantes, sindicalistas e servidores públicos protestaram em 250 cidades francesas – a mais vistosa demonstração popular dos últimos dez anos. Foi a 11ª jornada de protestos em menos de dois meses, reforçada por greves parciais de transportes e serviços públicos, contra o Contrato Primeiro Emprego. Esse projeto de lei proposto pelo primeiro-ministro Dominique de Villepin, aprovado pela Câmara, pelo Senado e validado sem reservas pelo Conselho Constitucional, libera empresas com mais de vinte empregados para contratar jovens de até 26 anos por um período de experiência de dois anos sem pagar indenização no caso de demissão. Na sexta-feira, o presidente Jacques Chirac promulgou a lei, com duas alterações menores. Reduziu o período de experiência para um ano e obrigou o empregador a informar o motivo da demissão.
A lei do Contrato Primeiro Emprego seria vista como branda em muitos países, mas não na França, cujo mercado de trabalho permanece engessado por uma legislação inflexível, repleta de privilégios arcaicos. O desemprego francês cresce desde os anos 70 – 23% dos jovens estão sem trabalho, índice que chega a 50% entre os filhos e netos de imigrantes que moram na periferia das grandes cidades. Ao lado dessa situação crônica, o crescimento da economia francesa é anêmico (1,6% em 2005). A equação não consiste no excesso da oferta de mão-de-obra, mas na dificuldade da França em criar empregos. A tecnologia de ponta francesa concebe e fabrica trens que rodam a 300 quilômetros horários, mas os ferroviários trabalham duas horas menos que a já minguada jornada de 35 horas semanais. Apesar da regalia, esses trabalhadores são sempre os primeiros solidários a greves, tenham elas relação com sua categoria ou não.
Charles Platiau/Reuters |
Protesto de estudantes: sonho de jovem francês é emigrar ou ser funcionário público |
Diante de um país com hábitos tão peculiares para os padrões econômicos atuais, muitos perguntam por quanto tempo a França vai sustentar a posição de quinta economia mundial. O ritmo do declínio francês só não é mais acelerado porque, enquanto uma minoria ruidosa e muito bem arregimentada protesta, faz greve e vive de seguro-desemprego, uma maioria silenciosa (calada sobretudo devido ao temor da patrulha ideológica) trabalha, paga encargos sociais e impostos pesados. Tome-se o exemplo da manifestação da semana passada. Apenas 1,6% da população saiu às ruas. A França tem 22 milhões de assalariados, apenas 10% deles sindicalizados – adesão inferior à dos americanos –, a maioria dos quais é de funcionários públicos. Essa gente é quem comanda os bloqueios na França e consegue passar aos inadvertidos a falsa impressão de que o país inteiro também está parado.
Além do renascimento do Ancien Régime, que se manifesta nas ruas com tênis de marca, e de uma horda de vândalos que aproveita as passeatas para destruir e roubar, há outra grande novidade. Trata-se da decisão do primeiro-ministro, Dominique de Villepin, de não ceder às pressões para retirar um projeto de lei. "A República não se move por ultimatos", disse o primeiro-ministro na Assembléia Nacional. O raro estoicismo causa imenso espanto nos franceses e provoca o isolamento político de Villepin até entre os membros de seu próprio partido. Eles estão mais habituados a ver o governo inclinar-se aos gritos dos manifestantes sob o risco de ser posto abaixo num país que historicamente tem dificuldade em promover reformas sem encetar revoluções.
Não só o futuro da França está em questão, mas também a candidatura de Villepin às eleições presidenciais do próximo ano. Para ter alguma chance, o primeiro-ministro precisa mostrar-se tão resoluto quanto o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, o favorito nas pesquisas eleitorais. Sarkozy pôs fim à revolta dos subúrbios em novembro do ano passado, quando vândalos tocaram fogo em mais de 7.000 carros. Um dos dois será escolhido candidato da direita para enfrentar, provavelmente, a socialista Ségolène Royal, que sobe nas pesquisas por representar, sobretudo, a probabilidade de reformas sem despertar a resistência dos militantes da esquerda. Apenas 29% dos franceses aprovam Villepin, cuja imagem é a de um político intempestivo e pouco conciliador. Apesar de chefiar um governo de regime parlamentar, ele nunca foi eleito, jamais trabalhou na iniciativa privada, sempre foi alto funcionário do Estado e fiel ao presidente francês Jacques Chirac. Quando serviu como chefe-de-gabinete, Villepin aconselhou Chirac a convocar eleições legislativas antecipadas que, uma vez perdidas, resultaram num governo de coabitação com a oposição socialista.
Sob fogo cruzado, Villepin convidou os líderes das centrais sindicais para discutir emendas no projeto de lei. A oferta foi prontamente recusada. Os sindicalistas querem a revogação total e não aceitam contrapropostas. Novas manifestações e greves estão marcadas para o início desta semana. "Na França, os sindicatos não são representativos nem consensuais como os da Alemanha. A cultura da revolta faz com que a demonstração de força preceda ao surgimento da negociação e a dificulte", disse a VEJA Daniel Cohn-Bendit, o lendário e carismático Dany le Rouge, líder estudantil em maio de 1968 na França, atualmente deputado do Partido Verde alemão no Parlamento europeu. O exemplo alemão, citado por Cohn-Bendit, é observado com atenção pelo francês médio. Isso porque às margens do Rio Reno impera um modelo de economia de farta proteção social, embora na iminência de ser reformado ou entrar em colapso. Já o exemplo bem-sucedido das reformas liberais promovidas pela primeira-ministra Margaret Thatcher na economia inglesa, nos anos 80, raramente é invocado pelos políticos franceses devido à rejeição popular a tudo o que vem do outro lado do Canal da Mancha. Culturalmente, a Inglaterra sempre foi considerada a antítese da França. Ironicamente, uma pesquisa recente mostrou que o jovem francês divide-se entre duas ambições: emigrar para a Inglaterra ou ser funcionário público com garantia de emprego até a aposentadoria. Raros entre eles querem abrir negócio próprio na França.
Depois que a Companhia Republicana de Segurança, a tropa de choque da polícia francesa, dispersou com jatos de água os baderneiros infiltrados entre os manifestantes na Place de la Republique, em Paris, Nicolas Sarkozy foi cumprimentar os policiais. VEJA perguntou ao ministro quais seriam as perspectivas da França para os próximos dias. "A situação hoje é grave. Eu tento resolver um dia depois do outro", respondeu Sarkozy. Do ponto de vista da manutenção da ordem sem brutalidade, considerando o volume de ações dos manifestantes em toda a França e o número de policiais nas ruas, o governo não estava fazendo feio. Se o presidente Jacques Chirac e Dominique de Villepin sustentarem a queda-de-braço com os manifestantes, a lei poderá quebrar a barreira psicológica que mantém a França prisioneira de estruturas sociais arcaicas. O desafio é tremendo: os excessos na proteção trabalhista geram altos índices de desemprego e, para resolver essa equação, não basta retirar de uns e deixar intactos os enormes privilégios de outros. De certa forma, para ingressar na modernidade, a França precisa retornar à doutrina fundamental de sua revolução: igualdade diante da lei e fim das categorias especiais de cidadãos.