Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 01, 2006

Os segredos de Dubai

VEJA

Como um pequeno emirado quase
sem petróleo se tornou um dos centros
dinâmicos da economia global


José Eduardo Barella


Dubai é o lugar mais vibrante, cosmopolita e inovador do mundo árabe – e também um dos mais pobres em petróleo. O paradoxo é que a escassez da principal riqueza do Golfo Pérsico é a melhor explicação para sua prosperidade. A previsão é que as reservas petrolíferas desse micro-Estado, um dos sete que formam os Emirados Árabes Unidos, estarão esgotadas dentro de quatro ou cinco anos. Um azar geográfico, pois em outros membros da federação o petróleo e o gás natural devem durar mais 100 anos. Sem essa riqueza fácil, que jorra das areias sem exigir esforço, o clã Al Maktoum, que governa desde a independência da Inglaterra, em 1971, tomou a decisão de usar o dinheiro do petróleo para diversificar a economia – uma atitude rara na região, pródiga em monarcas esbanjadores e despreocupados com o futuro. O resultado é impressionante. A economia de Dubai cresce ao ritmo de 16% ao ano – quase duas vezes o crescimento chinês – e o petróleo, que na década de 70 ainda era a maior riqueza, hoje representa apenas 7% do produto interno bruto (PIB).

 

David Cannon/Getty Images
Quadra de tênis no topo do hotel Burj Al Arab, a 211 metros de altura: turismo de luxo

O emir Mohammed bin Rashid Al Maktoum também é gastador. A diferença é que ele administra seu reino no deserto como se fosse uma empresa globalizada e investe em megaprojetos com um propósito bem definido: fortalecer Dubai como um centro comercial, turístico, tecnológico, industrial e de entrada e saída de produtos e passageiros no Golfo Pérsico. Seu minúsculo território – apenas duas vezes a área do município de São Paulo –, com apenas uma cidade, é cenário de algumas das obras arquitetônicas mais ambiciosas deste início de século. Com um produto interno bruto de 34 bilhões de dólares, o emirado está investindo 50 bilhões de dólares só em obras de engenharia. Projetado para ser o edifício mais alto do mundo, o Burj Dubai ganha um novo pavimento por semana e deverá custar 1 bilhão de dólares. A altura final é mantida em segredo para despistar os competidores, mas não terá menos de 800 metros. O maior aeroporto do mundo, já em construção, também será o de Dubai. Não há dúvidas sobre a urgência da obra. O aeroporto atual do emirado é o principal ponto de partida no Oriente Médio para 145 países.

Uma das dez maiores empresas aéreas do mundo, a Emirates é a principal compradora dos aviões da Boeing e da Airbus, com 37 bilhões de dólares em encomendas. A estratégia empregada pela companhia para crescer é um exemplo da visão empresarial do clã Al Maktoum. Nos anos 80, quando a Emirates foi fundada com uns poucos aviões, Dubai não era muito conhecido fora do mundo árabe. No início dos anos 90, a empresa convenceu os 400 hotéis da cidade a conceder descontos nas diárias para estadas curtas. A oferta estimulou europeus e australianos a fazer pequenas paradas em Dubai em suas viagens à Ásia. Aos poucos, o emirado deixou de ser apenas uma escala perdida no deserto e se converteu em sinônimo de turismo de luxo. Hoje, recebe 7 milhões de turistas por ano – 30% mais que o Brasil, país com território 2 200 vezes maior.

Antes de entrar na programação de férias de europeus e americanos, Dubai já era um dos passeios favoritos dos turistas árabes. Eles vão lá respirar um pouco da liberdade que não existe em seus países e fazer compras. Apesar de 95% de seus habitantes serem muçulmanos, Dubai escapa ao rigor puritano de alguns de seus vizinhos. As mulheres não são obrigadas a usar véu – ainda que a maioria use por tradição ou pressão familiar –, podem trabalhar e andar sozinhas na rua. As praias ficam repletas de turistas de biquíni e as bebidas alcoólicas são permitidas nos hotéis, restaurantes e resorts. Encravado no deserto, sem maiores atrativos naturais – exceto a beleza do mar azul – e com temperaturas que chegam a 50 graus no verão, Dubai seria um lugar improvável para um turista endinheirado passar as férias, não fosse sua sofisticada infra-estrutura hoteleira e de lazer.

Nasser Younes/AFP
Muçulmana em shopping center em Dubai: o véu não é obrigatório e as mulheres podem trabalhar fora de casa


Shopping centers enormes, lojas de grife, restaurantes com chefs franceses e hotéis cinco-estrelas enfeitam sua avenida beira-mar. O hotel Burj Al Arab, construído no formato de vela de navio e com 56 andares, custou 6 bilhões de dólares. Sua quadra de tênis, na cobertura, abriga anualmente um torneio internacional. No fim do ano passado, foi inaugurado em Dubai um complexo com cinco pistas de esqui e neve, produzida artificialmente. O maior empreendimento turístico, no entanto, é um arquipélago artificial de 10 bilhões de dólares, com ilhas em forma de palmeira e um conjunto de ilhotas que pretende reproduzir o globo terrestre. Vai abrigar condomínios de alto luxo, hotéis, restaurantes, parques e shopping centers. Para coroar a lista de projetos turísticos inusitados, será inaugurado em 2007 um hotel submarino de 220 quartos, a 20 metros de profundidade.

O turismo é uma vocação recente. Localizado na entrada do Golfo Pérsico, Dubai é desde o século XIX, quando não passava de uma vila de pescadores e catadores de pérolas, o mais importante entreposto comercial da região. A presença constante de estrangeiros ajudou a formar a atmosfera cosmopolita e tolerante. O petróleo começou a ser explorado nos anos 50. Abu Dhabi, o emirado vizinho, tem a quarta maior reserva conhecida, mas o subsolo de Dubai foi menos favorecido pela geologia. A verdadeira riqueza do país é a vocação comercial. O porto de Dubai, localizado na maior baía artificial do mundo, é o mais importante do Oriente Médio. O setor de transportes, estocagem de produtos e comunicações representa mais que o dobro do petróleo na composição do PIB local. Nos últimos dez anos, aproveitando sua localização estratégica, a meio caminho entre a Europa e a Ásia, Dubai investiu na atração de empresas estrangeiras e na ampliação de sua rede de comunicações e transportes.

Na Cidade da Internet, inaugurada em 2000, já se instalaram filiais da Microsoft, Dell, Siemens, HP, Oracle e IBM, os gigantes mundiais da tecnologia digital. Outro pólo empresarial, chamado DuBiotech, foi projetado para atrair laboratórios farmacêuticos. Há seis anos, Dubai inaugurou sua bolsa de valores, cuja ambição é atrair o capital gerado pelo petróleo nos países vizinhos. Por enquanto, a operação é incipiente, negociando basicamente títulos do governo. Em parte, isso se deve à desconfiança internacional decorrente da quebra do Banco de Crédito e Comércio Internacional (BCCI), controlado pelo clã Al Maktoum, no início dos anos 90. Com sede em Luxemburgo e operações em 69 países, o BCCI foi usado para lavagem de dinheiro por narcotraficantes e terroristas. Para afastar os fantasmas do passado, Dubai adotou uma rígida legislação financeira, copiada da Inglaterra e da Austrália.

Rabia Mogarabi/AFP
O emir Al Maktoum: um reino no deserto administrado como uma empresa


A modernização de Dubai deve-se bastante ao emir Mohammed bin Rashif Al Maktoum, de 53 anos, que assumiu com a abdicação de seu irmão mais velho, em 1995. Discreto e avesso a badalações, o emir espelhou-se no modelo econômico de Cingapura, a próspera cidade-Estado asiática. Basicamente, o que fez foi criar um ambiente favorável às empresas estrangeiras que queiram se estabelecer, investir ou simplesmente fazer negócios.

Não há barreiras alfandegárias e as alíquotas de importação são baixíssimas. Tampouco existem restrições à compra de propriedades por estrangeiros. Com algumas exceções, as empresas são isentas de impostos – por sinal, as pessoas físicas também. O governo pode se dar a esse luxo porque dispõe de diversas fontes de recursos, como as empresas estatais. Outra importante fonte de recursos são os investimentos vindos de Abu Dhabi. O vizinho país petrolífero é o principal financiador do desenvolvimento de Dubai, ainda que os valores exatos não sejam conhecidos.

Todos os grandes negócios realizados no emirado têm participação da Dubai Holding, conglomerado controlado pelo governo e conhecido pela agressividade de seus investimentos internos e externos. Esses negócios foram colocados sob o holofote da opinião pública recentemente, quando o Congresso dos Estados Unidos se opôs à compra por Dubai de uma empresa inglesa que controla a operação comercial em seis portos americanos. Os deputados barraram o negócio no início de março sob a alegação de que seria temerário deixar na mão de árabes um setor estratégico para a segurança do país. O que o Congresso americano parece não ter entendido é que Dubai é um dos poucos países árabes, talvez o único, que adotaram o modelo de sociedade e de economia globalizada que o governo dos Estados Unidos gostaria de ver triunfar no Oriente Médio.

Dubai tem 1,5 milhão de habitantes, 80% deles estrangeiros. Boa parte dos imigrantes não fala o árabe, e o inglês é o idioma corrente nos distritos financeiros, bares e restaurantes. Não há eleições no emirado, evidentemente, mas sua economia é aberta e transparente. "Não há conflitos religiosos ou grupos fundamentalistas islâmicos atuantes em Dubai, o que faz do emirado um lugar seguro para os negócios e para a vida privada", disse a VEJA a inglesa Anoushka Marashlian, especialista em Oriente Médio da consultoria Global Insight, com sede em Londres. Manter-se a salvo de atentados terroristas é tarefa árdua para uma federação de micro-Estados com vizinhos truculentos, como a Arábia Saudita, terra natal de Osama bin Laden. A estratégia para conter os extremistas tem duas pontas. A primeira é a atenta vigilância policial nos Emirados Árabes Unidos. A segunda, de grande sucesso, é a de Dubai. Consiste em se integrar à economia global e produzir riquezas. Não há melhor remédio no Oriente Médio.

 

 

O outro lado da prosperidade

 

Stephanie Kuykendal/NYT
Operários em obra de Dubai: greves e depredações

O frenesi empreendedor de Dubai tem suas vítimas. Construções gigantescas são erguidas em prazos curtíssimos – e os operários sentem-se massacrados nesse processo. Eles ganham pouco, trabalham sob pressão, moram em alojamentos apinhados durante anos, têm o passaporte e a permissão de residência retidos pelos patrões para que não troquem de emprego e são impedidos de se organizar em sindicatos. Essa situação se tornou conhecida há duas semanas, quando uma revolta de 2 500 trabalhadores paralisou as obras do Burj Dubai, projetado para ser o edifício mais alto do mundo. O arranha-céu, que vai abrigar um hotel cinco-estrelas da grife italiana Giorgio Armani, é o símbolo da pujança de Dubai – e agora também de seu lado menos atraente. O protesto começou quando, indignados com a demora dos ônibus fretados que os levariam de volta a seus dormitórios no deserto, os operários dominaram os guardas, destruíram computadores, danificaram tratores e outros equipamentos da construtora. Os prejuízos chegaram a 1 milhão de dólares. No dia seguinte, a greve espontânea teve a adesão de mais de 2 000 operários que trabalham nas obras do Aeroporto Internacional de Dubai, outra das jóias da construção civil do emirado. A paralisação de 24 horas se encerrou depois que várias reivindicações foram atendidas, entre elas a instalação de postos de atendimento médico nos dois locais, o pagamento de horas extras, o direito a um dia semanal de folga e, evidentemente, a saída dos ônibus no horário correto. Antes, os operários tinham de esperar, em média, duas horas pelo transporte – e, nesse meio-tempo, eram obrigados a trabalhar sem ganhar hora extra. Das oito paralisações de trabalhadores ocorridas no emirado nos últimos seis meses, a do Burj Dubai foi a mais violenta.

Estima-se que do 1,5 milhão de habitantes de Dubai pelo menos 1 milhão sejam imigrantes sem qualificação profissional, na maioria vindos da Índia, do Paquistão e das Filipinas. Na construção civil, eles sobrevivem com salários entre 150 e 200 dólares por mês – é um bom dinheiro se comparado aos salários miseráveis em seus países de origem, mas insuficiente para enfrentar o custo de vida cada vez mais elevado no emirado. Muitos pagam, em seus países, mais de 1 000 dólares para agenciadores ilegais de emprego conseguirem uma vaga de trabalho em algum empreendimento na cidade-Estado. O que encontram em Dubai está muito aquém do sonhado. Uma das maiores causas de irritação entre os operários do Burj Dubai era o pequeno número de relógios de ponto na obra. O que parece um problema prosaico causava grandes transtornos: as filas para registrar a entrada no serviço são demoradas e os atrasos são descontados de seus salários. Os operários também não são totalmente livres. Só podem sair do emirado com a autorização do empregador. Com ou sem permissão, alguns não têm coragem de voltar para casa de mãos vazias e entram em depressão. O consulado da Índia em Dubai registrou, em 2005, um aumento de 16% no número de suicídios entre os imigrantes indianos.

Divulgação

O hotel Burj al Arab: 56 andares ao custo de 6 bilhões de dólares.
Divulgação


Praia e mar azul: 7 milhões de turistas por ano.

Turismo de luxo: de olho em turistas europeus e asiáticos.

Projeto do edifício Burj Dubai: o mais alto do mundo, ultrapassando 800 metros.

Torres do Jumeira Beach: arquitetura moderna.

As gigantescas piscinas atraem os turistas de todo o mundo.
Al Qasr: um "palácio" encravado no meio de um resort.

Arquivo do blog