O GLOBO
Não houve racionamento de gás, mas o problema está longe de ser resolvido. Só neste fim de semana, a Petrobras está conseguindo concluir a ponte de safena, ou seja, um atalho para contornar o problema. O duto principal continua avariado. A estatal brasileira está queimando por dia quatro milhões de barris de combustível porque não consegue transportar o líquido que tira do gás. Está transportando por caminhão o que não é queimado.
É assim: o gás é úmido. É preciso separar o líquido, transportá-lo por duto para as refinarias, onde é transformado em gasolina, diesel, óleo combustível. Só depois dessa separação é possível bombear o gás para o Brasil. A Petrobras só consegue transportar uma parte do líquido, e por caminhão. O resto está sendo queimado. O governo usa a expressão "redução de confiabilidade" para definir a precariedade da situação. "É como andar num carro com o estepe furado. O carro anda, mas o risco é grande", disse um alto funcionário do governo.
Na quinta-feira, o ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau, reuniu-se com empresários de toda a cadeia do gás e o setor começou a preparar um plano de contingência permanente. Aprenderam com o susto que é preciso se preparar para problemas como esses e para os eventuais riscos que atinjam o fornecimento.
O episódio do rompimento do duto de gás na Bolívia, por causa das chuvas na semana passada, fez acender essa luz amarela. Há dois anos, o consumo do gás natural vindo da Bolívia não chegava a 19 milhões de metros cúbicos por dia. Hoje, a média já é de 26 milhões de metros cúbicos/dia. O acordo com a Bolívia prevê 30 milhões.
O governo fez uma grande — e mal planejada — campanha para incentivar o uso de gás natural. Agora, os industriais estão preocupados e apostam que, em algum momento entre 2006 e 2008, a demanda vai ficar bem maior que a oferta. Para acompanhar essa demanda, a Petrobras faria novos investimentos. Mas poderá a estatal continuar aumentando seus investimentos com a mesma confiança de sempre?
O consumo brasileiro está hoje em cerca de 45 milhões de metros cúbicos por dia. Para a indústria, vão 60% do gás natural consumido no Brasil; a outra parte é destinada a veículos, geração de energia (nas termelétricas), residências.
Na sexta-feira, dia 7, o governo, alarmado com o rompimento do duto e a impossibilidade de consertá-lo por causa de manifestantes nas estradas, anunciou um plano de racionamento. As distribuidoras estaduais teriam que, na terça-feira, cortar 12% da distribuição. Naquele fim de semana mesmo, o governo conseguiu tirar os manifestantes e os técnicos puderam começar a trabalhar no conserto do estrago das chuvas. Por ora, não haverá racionamento, mas, desde o anúncio, os industriais estão assustados. Muita gente hoje depende do gás como fonte de energia na produção.
— No momento, estamos lidando com isso com muita reza — brinca Lucien Belmonte, superintendente da Abividro. O setor que representa, com faturamento de US$ 1,4 bilhão, depende 100% do gás.
Os automóveis movidos a GNV saíram de 145 mil em 2000 para 1,2 milhão agora. Como o combustível é bem mais barato, o número vem aumentando exponencialmente; dependem dele não só os táxis, mas também empresas que têm frotas de automóveis. Hoje, o GNV já está presente em 12 estados.
Atualmente, apenas 5% da geração elétrica brasileira depende do gás, mas 20% do total de gás consumido são destinados às térmicas.
— Eu não tenho problemas porque meu contrato me garante suprimento, mas muita gente está desistindo do negócio porque não consegue ter estas garantias — comenta o diretor de uma termelétrica.
Lucien Belmonte conta que, no início do governo Lula, houve várias discussões sobre políticas de médio e longo prazos para o gás, mas nada foi muito adiante. O senador Rodolpho Tourinho propôs um projeto de regulação do transporte de gás, no meio de 2005; porém, no início deste ano, o governo encaminhou uma outra proposta, completamente diferente, para a Câmara. Resultado: nada andou.
O Brasil ainda produz pouco gás; assim, acaba dependendo muito do fornecimento de países bastante complicados, entre eles, o principal fornecedor, a Bolívia. Quando o presidente Evo Morales assumiu, a Petrobras disse que não tinha medo porque seria "mais igual que os outros", ou seja, teria um tratamento especial. Para os quéchuas e aymaras, Petrobras é tão sinônimo de imperialismo quanto Exxon ou Shell; somos até maiores.
É esta instabilidade regulatória e também o risco político que vêm preocupando os industriais: dos médios aos grandes. Rubens Muniz é um dos donos da Quimvale, uma indústria química de porte médio no interior do Rio de Janeiro. Há cinco anos, trocou na fábrica o óleo pelo gás. Ao ver a notícia de um possível racionamento, tomou um susto:
— Aqui na região, todos dependem do gás. Se eu não tiver gás, minha empresa tem que parar.
Para evitar o risco, eles começarão a intercalar o uso de óleo e de gás. Querem estar preparados caso haja alguma ameaça de corte num futuro próximo.
— O governo pediu para trabalharmos com gás e lá fomos nós. Agora, pode haver casos em que teremos de gastar mais de US$ 1 milhão para refazer a planta usando óleo. Há empresas que venderam créditos de carbono nesta troca de combustível — reclama Lucien Belmonte, da Abividro.
No Brasil, a maior consumidora é a própria Petrobras, que usa o gás no processo de refino. É ela também que calcula, em 2010, um consumo de 99 milhões de metros cúbicos por dia, mais que o dobro do atual. A principal pergunta é: quem garante o gás?
Entrevista:O Estado inteligente
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