O GLOBO
O Orçamento era uma peça de ficção na época da inflação e da falta de controles mínimos das contas públicas. Doze anos após a queda da inflação, 20 anos depois da criação da Secretaria do Tesouro, o Orçamento continua uma peça de ficção. Hoje o governo manda para o Congresso a LDO de 2007 e ainda não tem orçamento de 2006. As tesouras já estão afiadas para os cortes quando ele for aprovado.
O Brasil cumpre uma longa, interminável, transição para a normalidade. Era um país muito anormal na ditadura militar, quando havia três orçamentos e só um passava por um Congresso manietado. Continuou anormal na hiperinflação, quando ninguém entendia mesmo o que eram aqueles valores. Qualquer atraso em liberação de verba representava a redução substancial do dinheiro.
A criação da Secretaria do Tesouro e, mais que isso, a instalação de um sistema que dava ao Congresso o poder de vigiar o gasto público, o Siafi, encheu todo mundo de esperança. A lei orçamentária passaria a fazer sentido, ser vigiada e cobrada.
O escândalo dos anões pareceu mais uma etapa da purgação dos nossos velhos pecados para entrar num novo estágio civilizatório. A criação da LDO foi outro avanço importante. Primeiro, o parlamento aprova as bases do orçamento; depois, o governo aprova o orçamento.
Começou, então, uma luta para que os orçamentos fossem aprovados no prazo regulamentar e, em alguns anos, conseguiu-se a façanha: começar o ano já com o orçamento aprovado. Parecia que estávamos às vésperas da normalidade. Mas ela ainda estava longe porque havia três problemas na nossa rota: vinculações, DRU e contingenciamentos.
Porque os orçamentos sempre foram peças de ficção, o Congresso foi aprovando as vinculações. Isso veio da época da hiperinflação. A soma das vinculações tornava o orçamento uma impossibilidade para o Executivo. Ficou todo amarrado, com todo dinheiro com endereço certo e nada sobrava para o governo governar.
Como é muito difícil acabar ou reduzir as vinculações, o governo inventou a DRU, que libera temporária e parcialmente o dinheiro vinculado. Como os parlamentares aumentam muito a despesa sem previsão de receita, a solução é o contingenciamento: que dá ao governo o direito de não gastar o que o orçamento diz que é para gastar.
Todo esse arsenal de esquisitices, de gambiarras, impede o Brasil de ser um país normal. Mas este ano ficou mais anormal, porque já vivemos um terço de 2006 sem orçamento aprovado. O presidente culpa a oposição, mas, se o governo é maioria, é ele que tem a responsabilidade principal de aprovar o orçamento.
Porque o governo não consegue mobilizar sua base e negociar com estados e grupos de pressão, o país passou a ser governado por medida provisória. Gastos de custeio e investimentos são decididos por MPs. Uma anormalidade que lembra o período autoritário.
Os caminhos do gasto público são sempre tortuosos e qualquer atalho que se cria vira estrada principal; qualquer provisório vira permanente. A Lei Kandir, por exemplo, foi uma invenção de 1996 para durar quatro anos. Já tem dez e continuará viva nos próximos anos, pelo visto.
Surgiu da necessidade de tirar impostos que pesavam sobre a exportação e reduziam competitividade. Só que o governo federal deu esmola com o chapéu alheio: retirou o ICMS, que é estadual. Comprometeu-se, então, a dar uma compensação aos estados. Ela seria temporária pois a idéia é que o aumento da exportação elevaria a atividade e isso aumentaria a arrecadação para todos.
Mas os estados ficaram dependentes desse dinheiro compensatório. E é aquele negócio: quando é para brigar com o governo federal ou tirar dinheiro do orçamento, todos os estados ficam de acordo, independentemente de filiação partidária ou conflitos federativos. O resultado é que, todo ano, os estados se juntam, os empresários apóiam, os políticos se mobilizam e todos marcham para Brasília e impedem a aprovação do orçamento exigindo o aumento da compensação.
A exportação aumentou nos últimos anos mais do que qualquer cenário havia previsto. Os estados fazem as contas do que arrecadariam se o imposto fosse cobrado. O governo federal, quando aumenta o repasse pela Lei Kandir para os estados, tem que cortar nos próximos investimentos. Então isso não tem como dar certo, termina sempre em brigas e elas estão ficando cada vez mais penosas. Era para ser um acerto provisório e virou fonte permanente de impasse.
A solução imaginada em Brasília é criar um fundo que torne automático e tecnicamente calculado o tamanho do repasse para os estados. Mesmo quando isso estiver resolvido, algum dia, continuará o impasse da rigidez orçamentária, das emendas dos parlamentares, dos aumentos dos gastos inventados no orçamento e da resposta do governo, que é o contingenciamento. O contingenciamento, além de ser mais uma gambiarra, dá a impressão de governo austero, mesmo quando ele está gastando muito e mal, como agora. Mas as tesouras estão afiadíssimas: o contingenciamento deste ano será monstruoso, informa-se no governo. E o Brasil, pobre Brasil, vai ficando, assim, longe da normalidade.
O contribuinte, fonte de toda a dinheirama que é entregue aos governos anualmente, fica perdido nestas confusões todas e não tem nem paciência para tentar entender o que fazem com o seu (o meu, o nosso) dinheiro.