"É impossível que o presidente não soubesse"
O jurista Miguel Reale Júnior diz que Lula
foi o grande beneficiário do mensalão
e que reelegê-lo significa chancelar
a onipotência e a impunidade
Thaís Oyama
Fabiano Accorsi |
Ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, Miguel Reale Júnior votou em Lula na última eleição. Hoje, integra um grupo que chegou a analisar a possibilidade de pedir o seu impeachment. A hipótese foi descartada porque não existem condições políticas para levá-la adiante. Para o jurista, só as urnas poderão impedir a continuidade de um governo que, segundo ele, atirou-se ao poder "como porcada magra". Em entrevista a VEJA, Reale Júnior critica o comportamento do STF na crise, condena a participação do ministro da Justiça na violação do sigilo do caseiro Francenildo e afirma que reeleger Lula é dar carta-branca ao autoritarismo.
POR QUE O SENHOR DIZ QUE A VIOLAÇÃO DO SIGILO BANCÁRIO DO CASEIRO FRANCENILDO É, DENTRE TODAS AS ARBITRARIEDADES JÁ COMETIDAS POR ESSE GOVERNO, A MAIS GRAVE?
Porque é um ato característico de um governo fascista. É um caso Matteotti, felizmente sem cadáver (o jurista se refere ao assassinato, em 1924, do deputado socialista italiano Giacomo Matteotti – raptado e morto pela milícia do ditador Benito Mussolini depois de proferir discurso contra o partido fascista). É um episódio de perseguição, com o uso abusivo do aparelho de Estado, de alguém que testemunhou fatos inconvenientes para o governo. Se fazem isso com um caseiro que apenas disse ter visto o ministro na casa da República de Ribeirão Preto, o que não poderão fazer com outros que sabem de fatos muito mais comprometedores para o governo? O episódio é assustador porque mostra a ausência de qualquer freio ou limite na luta pela manutenção do poder por parte de seus atuais ocupantes.
E O QUE OS MOVERIA NESSA LUTA?
Severo Gomes, que era um grande conversador, dizia que não havia nada pior do que a porcada magra: quando chega, chega esfomeada. Os petistas chegaram ao poder com muita fome. Ocuparam todos os espaços, criaram milhares de cargos e queriam, a todo custo, manter esses cargos. Há um ditado espanhol que diz: "Quieres conocer Carlito? Dale un carguito". E foi isso que aconteceu com o PT. No poder, o partido revelou sua prepotência, sua arrogância, seu apetite desmedido e o seu desrespeito pelo direito do outro.
DIANTE DA PARTICIPAÇÃO DO MINISTRO DA JUSTIÇA, MÁRCIO THOMAZ BASTOS, NO EPISÓDIO DO CASEIRO, O SENHOR CONSIDERA QUE ELE TEM CONDIÇÕES DE PERMANECER NO CARGO?
O ministro Márcio é meu amigo. Mesmo assim, considero que existe apenas um cenário que poderia eximi-lo de qualquer responsabilidade nesse caso. Nesse cenário, ele teria comparecido àquela reunião na casa de Palocci como ministro de Estado, e não como assessor do advogado Arnaldo Malheiros. Teria ido a essa casa, nesse dia, para exigir que as pessoas confessassem um crime de Estado e que pedissem demissão ou renunciassem aos seus cargos. Em seguida, iria ter com o presidente da República para dar-lhe conhecimento dos fatos. Essa é a hipótese que livraria o ministro de qualquer mácula. Infelizmente, não acredito nela. Todos os fatos levam a crer que a alma do advogado prevaleceu sobre a alma do ministro Márcio Thomaz Bastos.
COMO O SENHOR VÊ AS RECENTES DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RELACIONADAS AOS ÚLTIMOS ESCÂNDALOS, QUE ACABARAM POR BENEFICIAR O GOVERNO?
Evidentemente não posso concordar com a posição do ministro (Antonio Cezar) Peluso, por exemplo, quando ele desconsidera a importância do depoimento do caseiro e afirma que ele não tem "condições culturais" de trazer fatos relevantes para a investigação. Ainda que eu considere o ministro Peluso o melhor ministro do Supremo – um homem correto, probo e de grande sabedoria –, não posso concordar com ele.
O SUPREMO TAMBÉM TEM IMPEDIDO A QUEBRA DE SIGILO DE PAULO OKAMOTTO (AMIGO DE LULA E TIDO COMO RESPONSÁVEL PELAS FINANÇAS PESSOAIS DO PRESIDENTE). O QUE ESTARIA MOTIVANDO ESSAS DECISÕES?
Não sei. Mas ouvi comentários no sentido de que o Supremo estaria chamando para si a responsabilidade pela manutenção da governabilidade. Acredito que, talvez, alguns dos ministros possam estar assumindo essa posição: a de tentar contribuir para impedir a desestabilização do governo. Sem dúvida é um equívoco. A desestabilização das instituições é muito mais grave do que a desestabilização de um governo.
O SENHOR JÁ AFIRMOU QUE, TECNICAMENTE, EXISTEM INDÍCIOS SUFICIENTES PARA PEDIR O IMPEACHMENT DO PRESIDENTE LULA. QUAIS SÃO ELES?
Ora, quem era o grande beneficiário do mensalão? O presidente da República. Qual era o resultado desse esquema de corrupção? A aprovação de todos os projetos e emendas constitucionais que ele mandava para o Congresso. Um dos crimes de responsabilidade é cooptar a vontade do Congresso pela via da corrupção. É impossível que o presidente da República não soubesse como se formavam as maiorias que sustentavam os seus projetos de lei.
O QUE IMPEDE QUE SE PEÇA O IMPEACHMENT, ENTÃO?
O impeachment é um processo político-penal. Para dar início a ele, não basta que se tenha o elemento jurídico. É necessário que a proposta tenha viabilidade no Congresso e encontre receptividade junto à sociedade. Hoje, não se tem nenhum desses elementos. Primeiro, porque não há juízes em Brasília. Como é que a Câmara que absolveu (o deputado petista) João Paulo Cunha e outros mensaleiros vai votar o impeachment? Essa Câmara não tem condições morais nem políticas para isso. Em segundo lugar, a sociedade estaria dividida diante de uma proposta como a do impeachment. A taxa de indignação dos brasileiros baixou muito. Hoje, você tem um nível de resposta muito pequeno aos escândalos.
E A QUE SE DEVERIA ISSO?
Creio que a população brasileira se cansou da reiteração dos diversos episódios de corrupção a que assistiu: houve Collor, anões do Orçamento, Severino Cavalcanti e onze meses de crise do mensalão. Tudo isso leva a uma crescente descrença na política e a uma ausência de mobilização – o que, a meu ver, é um fenômeno extremamente perigoso.
Porque, se tudo o que está ocorrendo não tiver como resultado um impeachment nas urnas, isso gerará no grupo que tomou o poder a sensação da onipotência e da impunidade. Se Lula for eleito depois de todos esses fatos, nós não estaremos dando uma carta-branca para que um autoritarismo desbragado tome conta do país? Não estaremos emprestando nossa anuência a tudo o que aconteceu? Temo o que possa vir depois disso.