O ministro-advogado
O que Delúbio, Silvinho, Meirelles e Palocci
têm em comum? Todos usaram as teses
jurídicas de Márcio Thomaz Bastos e o
advogado indicado por ele para driblar a PF
Marcelo Carneiro
Dida Sampaio/AE |
Thomaz Bastos: ele analisa as denúncias, cria as teses jurídicas para defesa dos envolvidos e arregimenta um exército de advogados |
Em 2003, quando assumiu o comando da Justiça, Márcio Thomaz Bastos deixou para trás quarenta anos de atuação como advogado criminalista. Tornou-se o responsável direto pelo mais tradicional ministério da República e o encarregado da "defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais", como dispõe o decreto que regula as atribuições da pasta. No sábado 8, após VEJA revelar sua participação em uma operação para salvar a cabeça do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e do presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, responsáveis diretos pela quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa, Thomaz Bastos emitiu uma nota oficial. Nela, tentava explicar por que, no dia 23 de março, quando já era evidente a participação de Palocci e Mattoso no ato criminoso, levou à residência do colega de ministério o também criminalista Arnaldo Malheiros. Para não confessar o óbvio – ali estava sendo tramada a defesa da dupla Palocci-Mattoso –, o ministro da Justiça saiu-se com uma pérola. "Durante o contato, Malheiros fez uma exposição, ouviu e falou sobre alguns aspectos genéricos da questão", diz um trecho da nota oficial do ministério.
Essa explicação não resiste à mais simples lógica. Nos dias 16 e 17 de março (uma semana antes, portanto) dois assessores de Márcio Thomaz Bastos reuniram-se duas vezes com Palocci e discutiram com o ministro da Fazenda a possibilidade de a Polícia Federal (subordinada ao Ministério da Justiça) investigar o caseiro Francenildo Costa. São eles Daniel Goldberg, secretário de Direito Econômico, e Cláudio Alencar, chefe-de-gabinete de Thomaz Bastos. As reuniões com ambos atendiam a um pedido de Palocci, que dizia ter informações sobre uma suposta "movimentação atípica" na conta bancária de Francenildo. Horas depois da segunda reunião, no dia 17, o extrato de uma conta do caseiro na CEF foi divulgado no blog da revista Época. O secretário de Direito Econômico, aliás, esteve na casa de Palocci um dia antes, quando Mattoso entregou ao ministro o extrato do caseiro. Testemunhou até uma pequena comemoração. Goldberg e Alencar, homens de confiança de Márcio Thomaz Bastos, não são néscios. É evidente que, ao ligarem os fatos (a ida de Mattoso à casa de Palocci, o pedido do ministro e a divulgação do extrato), chegaram a uma única conclusão: o titular da Fazenda tinha envolvimento no vazamento.
Portanto, é impossível acreditar que, diante de tanta informação já reunida, um criminalista com a experiência de Thomáz Bastos se dirigisse à casa de Palocci apenas para ouvir uma exposição sobre "aspectos genéricos" de um crime. Não resta dúvida de que o papel do ministro nesse episódio foi totalmente incompatível com o cargo que ocupa. O problema mais grave, porém, é que essa não foi a primeira vez que fez o papel de advogado do governo do presidente Lula. Na verdade, o modus operandi da Operação Caseiro seguiu à risca um script conhecido. O roteiro apresenta o seguinte padrão: assim que estoura um escândalo no governo, o ministro é acionado para reunir as informações e expor ao presidente um cenário – em geral desastroso, graças à capacidade dos petistas de meter-se em confusão. Em seguida, Thomaz Bastos elabora uma tese jurídica capaz de minorar os danos causados pela denúncia. Por fim, o ministro da Justiça trata de escalar advogados de sua confiança para encampar a tese criada e defender os acusados.
Jose Varella/CB | |
O advogado Malheiros assessora Delúbio (acima); Henrique Meirelles e Silvio Pereira (abaixo): todos clientes indicados pelo amigo Márcio Thomaz Bastos | |
Rose Brasil/ABR | Joedson Alves/AE |
Foi assim, por exemplo, quando Delúbio Soares veio a público, sob a defesa de Arnaldo Malheiros, expor o argumento de que o dinheiro do valerioduto não fora roubado dos cofres públicos, mas viera de empréstimos do Banco Rural, e de que os recursos se destinavam ao pagamento de dívidas do PT omitidas da Justiça Eleitoral, e não à compra de votos dos parlamentares, o mensalão. A idéia era transformar um crime grave, a corrupção, em um delito circunscrito à legislação eleitoral. Como o número de acusados era muito grande no escândalo do mensalão, a operação exigiu uma logística refinada – não só para fornecer advogados a todos, mas, principalmente, para esconder do público a existência de um comando único, vindo diretamente do Ministério da Justiça. Inicialmente coube a Malheiros reunir um esquadrão de defensores e distribuí-lo entre os réus. Não foi fácil. Silvio Pereira, por exemplo, negou-se a aceitar o nome indicado por Bastos. Exigia que o próprio Malheiros o defendesse. O advogado resistiu, alegando que já fora decidido que trabalharia somente para Delúbio. Diante de tanta insistência, Malheiros foi obrigado a ficar com os dois. Coube também ao advogado assessorar o ex-ministro José Dirceu. Foram várias as reuniões promovidas pelo criminalista no apartamento de Dirceu em Brasília durante o mês de julho. Malheiros não se tornou defensor de Dirceu, mas foi decisivo na escolha de José Luiz de Oliveira Lima, que contava com a simpatia de outro amigão do ex-chefe da Casa Civil – o também advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.
Bastos e Malheiros atuaram ainda para salvar a pele de Henrique Meirelles quando o presidente do Banco Central enfrentou denúncias de sonegação fiscal e evasão de divisas. Convocado pelo presidente Lula, o ministro Thomaz Bastos chamou Malheiros (olha ele de novo aí...) para avaliar a situação de Meirelles e elaborar a melhor estratégia de defesa. O presidente do BC gostou tanto do trabalho que demitiu seu então advogado, Antônio Claudio Mariz de Oliveira, para ficar com o amigo do ministro. Thomaz Bastos voltou a assessorar Meirelles logo depois, durante o nebuloso episódio envolvendo a intervenção do Banco Santos, em 2004. A ação estava prevista pelo BC para ocorrer na quinta-feira, 11 de novembro. Antes disso, Meirelles comunicou pessoalmente o fato a Palocci e a Bastos – o que já é curioso, por tratar-se de assunto sigiloso. Por algum motivo que só os três podem explicar, Meirelles saiu da reunião com uma decisão: adiaria a intervenção por um dia. Isso permitiu ao senador José Sarney (PMDB-AP) sacar, na própria quinta-feira, 2 milhões de reais de sua conta no banco. Pouco tempo depois, processado criminalmente, o ex-dono do Banco Santos, Edemar Cid Ferreira, decidiu contratar Malheiros (sempre ele) para defendê-lo das acusações de fraude e gestão temerária de instituição financeira – crimes federais, investigados pela PF de Thomaz Bastos.
As assessorias prestadas pela dupla Bastos/Malheiros para salvar amigos dentro e fora do governo formam uma curiosa teia de relações. Malheiros consegue ao mesmo tempo defender o presidente do Banco Central e o dono da instituição financeira que culpa o mesmo BC por eventuais erros na intervenção do Banco Santos. Tem mais: Edemar e Delúbio, dois dos clientes de Malheiros, já se conheciam antes da quebra do Santos. O banco de Edemar foi a primeira instituição sondada por Delúbio, então tesoureiro do PT, para participar da farsa dos empréstimos fajutos ao partido – papel que coube ao Rural e ao BMG. Às vésperas da intervenção, Edemar também buscou a ajuda de Delúbio para reforçar o caixa da instituição financeira com dinheiro de fundos de pensão estatais. A operação fracassou.
Márcio Thomaz Bastos se vangloria de não interferir nos trabalhos da Polícia Federal. Pode até ter razão, já que, nos últimos anos, a PF se notabilizou por trabalhar livremente em ações de grande repercussão. Mas, quando os crimes se aproximam do círculo de amigos do ministro-advogado do governo, a história é diferente. Usando esses estratagemas, ele acaba atrapalhando as investigações da própria instituição que comanda. "Márcio Thomaz Bastos tornou-se um ministro de governo, e não de Estado. Apesar de, por força do cargo, estar impedido de atuar como advogado, na prática prestou um trabalho de advocacia administrativa", analisa o presidente nacional da OAB, Roberto Busato. Nesta terça-feira, Márcio Thomaz Bastos irá ao plenário da Câmara tentar defender-se do indefensável: a acusação de que tentou esconder a participação de Palocci e de Mattoso na quebra do sigilo do caseiro. Muitos dos parlamentares que estarão na platéia já o tiveram como advogado criminalista. A eles, recomenda-se que não cometam o mesmo erro de Thomaz Bastos: confundir o advogado com o ministro.