O GLOBO
Não é mera retórica a citação do caso Watergate, que levou ao impeachment do presidente Richard Nixon nos Estados Unidos em agosto de 1974, por diversos políticos e juristas presentes ao ato do movimento "Da indignação à ação", coordenado pelo jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr, na sede da OAB de São Paulo.
Nixon foi eleito presidente em 1968, e reeleito em 1972 com uma vitória esmagadora, ganhando em 49 dos 50 estados, mesmo estando sob investigação a invasão do Comitê Nacional do Partido Democrata, em junho do ano da eleição. Durante a investigação oficial, foram apreendidas fitas gravadas que demonstram que o presidente tinha conhecimento das operações ilegais contra a oposição. Em 9 de agosto de 1974, quando várias provas já ligavam os atos de espionagem ao Partido Republicano, Nixon renunciou. Já contei aqui na coluna, mas vale a pena repetir, episódio narrado no recente livro de Bob Woodward "O homem secreto", sobre a verdadeira identidade do informante Deep Throat que o ajudou, e a Carl Bernstein, repórteres iniciantes do "Washington Post", a desvendarem o caso Watergate que levou o presidente Nixon à renúncia.
Certo dia, quando chegaram à conclusão de que tinham elementos suficientes para identificar John Mitchell, que fora, entre outros cargos, o equivalente a ministro da Justiça de Nixon, como uma das cinco pessoas que controlavam um fundo secreto do comitê de reeleição que financiava ações ilegais como a invasão do escritório do Partido Democrata no prédio Watergate, Bernstein e Woodward ficaram chocados: "Meu Deus. Este presidente vai ser impichado", exclamou Bernstein.
Depois dessa conversa, passariam mais 12 meses até que o Congresso abrisse o processo de impeachment contra Nixon, e mais outros 10 meses até que o presidente renunciasse. Sete altos funcionários da Casa Branca foram condenados, entre eles John Mitchell, e o chefe do Gabinete Civil H. R. Haldemann, e o próprio Nixon foi considerado "co-conspirador não indiciado".
Desde o início de nossa crise política, a partir de uma denúncia do ex-deputado Roberto Jefferson em junho do ano passado, já se passaram dez meses e as acusações se sucedem incessantemente, sempre chegando às portas do Palácio do Planalto.
Não é à toa que os petistas querem retirar do relatório final da CPI dos Correios o indiciamento dos dois ministros ligados diretamente ao presidente Lula, José Dirceu e Luiz Gushiken, identificados formalmente como organizadores do mensalão. Agora, com a quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, mais um ato criminoso aparece sendo arquitetado dentro do Palácio do Planalto por outro membro do "núcleo duro" do governo, o ministro da Fazenda Antonio Palocci.
Ele teria pedido ao presidente da Caixa Econômica Federal que entrasse na conta do caseiro durante uma reunião da qual participou também o presidente Lula. Não existe, até o momento, nada que indique que o presidente pessoalmente tenha participado dessa conversa, mas a oposição ainda não engoliu a versão da senadora Ideli Salvatti de que, quando disse que o presidente Lula fez cara de quem "já sabia" dos depósitos na conta do caseiro, quis apenas dizer que ele "desconfiava" de alguma coisa errada.
As investigações da Polícia Federal prosseguem para definir exatamente até onde vai a cadeia de comando dessa operação criminosa que, mais uma vez, envolve altos funcionários do primeiro e segundo escalões do governo e políticos petistas, sem que o presidente Lula de nada soubesse.
Ao mesmo tempo, agrava-se a situação do amigo e presidente do Sebrae Paulo Okamotto, que faz das tripas coração para proteger seu sigilo bancário, embora diga que não vê nada de mal no que fez, referindo-se ao pagamento de uma dívida pessoal do presidente Lula com o PT.
Okamotto, que pagou a dívida estranhamente em dinheiro vivo, conta uma história atravessada sobre retiradas de dinheiro em diversas contas, inclusive na de sua mulher, para pagar ao PT, mas não permite que os parlamentares da CPI tenham acesso a essas contas. Se não fez nada de errado, e se são infundadas as desconfianças da oposição de que ele na verdade usou dinheiro do valerioduto para pagar as dívidas de seu amigo presidente, por que ele insiste em não permitir a quebra de seu sigilo, apelando para o Supremo?
E, se não deve nada, por que foge ridiculamente do oficial de Justiça que foi intimá-lo para uma acareação na CPI dos Bingos com o ex-militante petista Paulo de Tarso Wenceslau, que o acusa de ser um dos coordenadores da arrecadação ilegal de caixa dois para campanhas eleitorais do PT?
A montagem de um esquema de compra de parte do Congresso Nacional, um dos poderes da República, através do mensalão, cuja existência o relatório oficial da CPMI dos Correios confirmou, já é um dos maiores atentados à democracia ocorridos no país. A quebra ilegal do sigilo do caseiro nos mostra um estado policial usando seus poderes de maneira ilegítima para constranger uma testemunha.
Reduzir todos esses acontecimentos à mera "luta política" de um ano eleitoral é simplificar perigosamente o que vem acontecendo no país. Assim como Nixon, Lula pode até mesmo vir a ser reeleito. Mas as investigações continuarão. Como no caso Watergate, todos os homens do presidente, de uma maneira ou de outra, estão caindo como conseqüência das denúncias de corrupção envolvendo o governo. Todos os homens do presidente estão envolvidos nos crimes contra o Estado de Direito que vêm sendo perpetrados.
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Eduardo Jorge Caldas, ex-secretário-geral da Presidência no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, escreve para corrigir uma informação: ele saiu do governo em abril de 1998, por vontade própria, para coordenar a campanha de reeleição. Somente em julho de 2000 se iniciou a crise conhecida como "caso Eduardo Jorge".