Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 16, 2006

João Ubaldo Ribeiro Nós somos é do bé-bé-bé

o globo
  

Acho que ando numa fase temerária, correndo riscos que uma pessoa sensata evitaria. Na semana retrasada, arrisquei-me de duas maneiras, a formal e a informal. Formalmente, arrisquei-me a ser acusado de algum delito contra a honra. Informalmente, arrisquei-me a que mobilizassem todos os recursos ao alcance do poder público para me complicar. Se fazem isso com um caseiro, imaginem com um membro das elites, como os colunistas de jornal são classificados. Tenho procurado precaver-me e, até tentei tomar certas medidas preventivas. Confrontado com um desconto de quase 40 por cento no que me pagam pelos meus livros, pensei em oferecer logo a metade, ou 80 por cento, ou o que quiserem, para ver se assim seguro qualquer outra represália, se bem que 80 por cento do que ganho não devam dar para um jantar de pizza com belos vinhos, como os de Brasília. Mas já seriam o suficiente para a gorjeta do garçom — e creio que as gorjetas em Brasília são pagas com os famosos cartões de crédito do governo — crédito para eles, débito para nós, é claro.

Hoje, decidi que me arriscarei a ser qualificado de subversivo, embora o termo tenha saído da moda. Mas nada impede sua volta, de maneira que me apresso a explicar que não estarei pregando a subversão, Deus me defenda. Vou apenas fazer umas comparações, com as quais desejo demonstrar a singularidade brasileira face a outras nações, inclusive e principalmente as desenvolvidas. Comparar, espero eu, não é subversivo. E provar a nossa singularidade é quiçá um ato de amor à pátria, apesar de talvez um pouco exagerado.

Não quero, com o que vou dizer, que façamos o que outros fazem, notadamente cometer atos de violência. Quero só lembrar como somos subservientes e ovinos e quem estiver com a caneta pode fazer o que quiser conosco, que nós agüentamos, no máximo com uma chiadazinha aqui e ali. Os funcionários públicos e os ocupantes de cargos eletivos agem como se fossem — e na prática são — nossos patrões. Até a elaboração das leis, atribuição do Poder Legislativo, foi tomada pelo Executivo, através das medidas provisórias, que, na ditadura de Vargas, eram chamadas de decretos-leis. Claro, qualquer jurista interessado poderá argumentar que isto é uma asneira, até porque dirá que vivemos numa democracia — ao que, enquanto me algemam, responderei que, além de não saber o que é democracia, ele deve estar é se dando bem na lama.

Vejam o que aconteceu na França, por exemplo. Não interessa agora discutir os problemas da França ou quem tem razão na briga. O que interessa é registrar que, quando confrontada com uma canetada do poder que não lhe agradava, a francesada foi às ruas mostrar quem são os donos do país e a lei, já promulgadinha e tudo, acabou sendo revogada, porque lá os governantes não são patrões do povo. Se fosse aqui, o máximo que haveria seriam protestos de jornalistas e de freqüentadores de boteco. A lei seria devidamente engolida e ponto final, pois engolimos tudo.

Não posso conceber país nenhum em que, com a caneta do poder, um presidente ou premier prendesse o dinheiro de todo mundo, como fez o ex-presidente Collor, e ficasse tudo por isso mesmo. Não ficava. É absolutamente inimaginável, não somente para países desenvolvidos como para subdesenvolvidos também, como de vez em quando vemos na tevê ou lemos em algum lugar. Na França, então, meu Deus do céu, seriam capazes até de retirar a guilhotina da aposentadoria, como sabe qualquer um que já tentou mexer com dinheiro de francês. Em relação à lei do primeiro emprego que o governo da França promulgou e o povo revogou, acredito que a nossa reação principal seria no Rio mesmo, com um grupo de uns 500 caras-pintadas carregando faixas e abraçando o edifício do Tribunal Regional do Trabalho. Bem, talvez não 500, mas pelo menos 200, contando o pessoal que aparece para paquerar.

Recordo o nosso querido Portugal (onde, aliás, não somos mais tão queridos, agora que quem emigra para lá somos nós e não eles para cá — nada como um dia depois do outro). Se decretassem a CPMF em Portugal, o aconselhável seria fugir de Lisboa ou buscar asilo numa embaixada. Não quero nem pensar na reação popular, notadamente quando se comprovasse o que se sabia desde o início, ou seja, que não haveria nada de provisório nesse novo assalto ao nosso bolso. Verdade, Portugal viveu décadas sob uma ditadura, mas, quando achou a hora, fez uma revolução nada cordial, apesar do nome de Revolução dos Cravos. Quem estava lá na ocasião poderá testemunhar. Aqui não. Aqui a CPMF veio para ficar e ninguém reclama mais, os homens ordenam e a gente faz, pois, afinal, quem manda são eles, o Brasil é deles.

Toda a bandidagem que temos testemunhado e tudo o que se fez de mal ao povo, não só neste governo como nos anteriores (o atual acha que a grande solução social é dar esmolas com nomes artísticos e o dinheiro da classe média e dos próprios pobres), não nos move a nada, a não ser a resmungos e uns eventuais gritinhos. Vai-se engolindo tudo como vassalos de suseranos tirânicos e ainda se é obrigado a tolerar afirmações como "nunca se investigou tanto o governo neste país", como se isso não fosse mera obrigação e erros anteriores justificassem erros atuais, principalmente da parte de quem veio para mudar — mudar de apartamento para mansão, em alguns casos. Portanto, carneiros sendo, carneiros continuaremos a ser e suspeito até que, se baixassem uma medida obrigando todos os assalariados a pôr suas mulheres à disposição do governo, como os japoneses fizeram com os coreanos, alguns protestariam, outros matariam as mulheres (nossa solução mais tradicional para problemas com mulheres), mas a maioria, depois de queixas logo esquecidas por causa da Copa, emitiria o mesmo "bé" de sempre. Ou "mu", no caso.

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