A coluna de quinta-feira, em que reproduzi o relatório da comissão que a Bolsa de Valores de São Paulo enviou à Austrália e à Nova Zelândia para estudar maneira de encarar a administração pública utilizada naqueles países, com a busca de resultados através de uma gestão eficiente e metas a serem atingidas, tanto financeiras quanto qualitativas, despertou interesses os mais diversos, e reparos ao pouco entusiasmo que demonstrei com a viabilidade de implantação do projeto num país como o nosso, com tamanhas questões sociais a serem enfrentadas, e uma imensa máquina burocrática que atende aos interesses políticos, em todos os níveis da Federação.
Raymundo Magliano Filho, presidente da Bolsa de Valores de São Paulo, define os objetivos do documento que será entregue aos candidatos a presidente da República: "Estamos tentando transformar a contabilidade pública em privada. Um tema que sempre foi muito da Bolsa, a transparência, tem que ser levado para o contexto público. Tem que ser buscada a qualidade do serviço público, especialmente na saúde e na educação", diz ele. Magliano diz que, para isso, é preciso "convencer os políticos de que tendo mais dinheiro, acabando com o desperdício, haverá mais verba no Orçamento para os programas sociais. Os países não têm verba, mas se o estado for racionalizado, vão ter mais condição para investir".
A experiência de gestão do Estado nos moldes de uma empresa privada é nova entre nós, mas é uma tendência crescente nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a entidade que reúne os países desenvolvidos. Austrália e Nova Zelândia foram os pioneiros, no final da década de 80. O movimento iniciado na Oceania chegou, na primeira metade da década de 90, a países como Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Holanda, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos.
No final dos anos 90 e início do século XXI, foi a vez de Alemanha, Áustria e Suíça introduzirem novas versões dessas reformas. Segundo relatório do OCDE, as abordagens dos países em relação à gestão de desempenho estão em constante evolução. Austrália, Nova Zelândia e Holanda começaram concentrando-se nos produtos, e agora estão mudando para uma abordagem mais voltada a resultados. A França aprovou uma lei que exige a produção de resultados, e nos Estados Unidos os ministérios desenvolveram planos estratégicos que incluem metas de desempenho.
Uma pesquisa com base no banco de dados de práticas e procedimentos de orçamento do Banco Mundial/OCDE de 2003, em 28 dos 30 países membros, concluiu que:
- 72% dos países da OCDE incluem dados de desempenho não-financeiros em seu orçamento;
- 18% dos países (como Holanda e Nova Zelândia) relacionam gastos com todas ou com a maioria de suas metas finais;
— 11% dos países possuem mecanismos formais para premiar os funcionários públicos, com a combinação entre desempenho, metas atingidas e bônus salarial;
— O ministro ou chefe de departamento é formalmente responsável por estabelecer as metas de desempenho em 67% dos países;
— O desempenho em comparação com as metas é continuamente monitorado no ministério competente em 56% dos países.
Um exemplo das dificuldades que a cultura política do nosso país impõe à implantação de um sistema como esse encontramos no município do Rio de Janeiro, teoricamente um dos lugares mais avançados da política brasileira. A vereadora do PSDB Andréa Gouvêa Vieira conseguiu aprovar na Câmara emendas ao orçamento que introduziam planilhas referentes a metas, prioridades e obrigações do município.
A proposta, inédita no Brasil, tinha o objetivo de fortalecer o Poder Legislativo e implantar a transparência fiscal no município. Mais: implementava o que já está previsto na Constituição Federal, na Constituição Estadual e na Lei Orgânica do Município, mas que não é cumprido por nenhum dos níveis do Poder Executivo, que informam apenas genericamente as metas e prioridades do orçamento.
"O Executivo deverá explicar os meios para alcançar estas metas, quanto custou o seu cumprimento, quem foi o gestor responsável. E se a meta não for cumprida, teremos a quem responsabilizar", explicou na ocasião a vereadora. Pois o prefeito Cesar Maia vetou a iniciativa.
Ester Inês Scheffer, especialista em gestão pública e assessora da vereadora Andréa Gouvêa Vieira, diz que pesquisas de entidades internacionais identificaram orçamentos mal elaborados como causa das crises que muitos países vivem. Não por falta de dinheiro, mas pela falta do controle social dos orçamentos públicos e de transparência fiscal. Ela conhece bem os contratos de gestão de países como a Austrália, e cita que lá a saúde pública tem cerca de 56 indicadores que devem ser observados pelos gestores, começando pelo tempo de espera do atendimento e terminando com o índice de retorno por complicações causadas pelo primeiro atendimento.
No Brasil, um exemplo de como os contratos de gestão podem dar resultado é a Associação das Pioneiras Sociais, que administra a Rede Sarah, hospitais transformados em centros de excelência geridos por meio de um contrato de gestão, firmado em 1991 com a União, que explicita os objetivos, as metas e os prazos a serem cumpridos.
Agora mesmo, no entanto, a Rede Sarah está enfrentando um problema causado pelo corporativismo que ainda rege as relações de trabalho no Brasil. O sindicato dos fisioterapeutas conseguiu aprovar uma lei que limita o horário de trabalho a seis horas diárias. Como as metas acertadas pelo Sarah com o Ministério da Saúde se baseiam num trabalho de dedicação exclusiva de todos os seus funcionários, elas terão que ser reduzidas, com prejuízo para a população, se não houver uma solução jurídica adequada.
O velho e o novo
Discutir a implantação de um novo sistema de orçamento público, que privilegie o atingimento de metas de gestão com qualidade e baixo custo, num país que não conseguiu ainda nem mesmo aprovar seu velho Orçamento para o ano que já entra em seu quinto mês, parece mesmo uma utopia irrealizável. Ainda mais quando o governo federal se utiliza ilegalmente de medidas provisórias para liberar o Orçamento, e retira as barreiras que o impediam teoricamente de aumentar os gastos e os impostos, sem que seja possível nenhum controle por parte do Legislativo. Para se chegar a um orçamento que privilegie qualidade de gestão é necessária ampla reforma na legislação, que será estudada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em projeto conjunto da Bovespa, Fiesp e Iedi.
Na análise do grupo da Bovespa que viajou à Oceania para estudar a nova maneira de gestão pública de que países como Austrália e Nova Zelândia são pioneiros, desde os anos 80, ao contrário do que acontecia naqueles países, no Brasil, para coibir a corrupção e os desvios, a legislação sobre a máquina pública se tornou ainda mais rígida, acabando por criar novos obstáculos à atuação mais criativa dos gestores públicos.
O resultado é que experiências inovadoras acabam sendo limitadas graças ao arcabouço institucional muito burocrático, e à mentalidade vigente que só exige o cumprimento estrito da legislação, não se importando com os resultados. Assim, para evitar que o controle dos gastos públicos, necessário para estabilidade macroeconômica, deixe de exigir simples cortes lineares no Orçamento, especialmente nos investimentos, como tem sido há mais de dez anos, é preciso que sejam introduzidas mudanças gerenciais para aumentar a eficiência do gasto, de maneira que não provoque uma piora nas condições dos serviços prestados à população.
A Lei de Responsabilidade Fiscal, um avanço fundamental no equilíbrio das contas públicas, prevê a criação de um Conselho de Gestão Fiscal que nunca foi regulamentado. O economista José Roberto Afonso, principal formulador da LRF, diz que ela, nos seus princípios maiores, foi inspirada na Nova Zelândia. Ele acha que o que falta é completar a implantação da lei, aprofundar a nova cultura, inclusive na linha gerencial sugerida pelo grupo. A nossa LRF prevê, por exemplo, limites para dívida federal, e Congresso e Senado sequer iniciaram a votação. E também está prevista contabilidade de custo, que permitiria quantificar quanto custa cada aluno de cada universidade federal, por exemplo, mas nada foi feito
Outra mudança legal necessária é a criação de contratos de gestão em que todos os gestores públicos responsáveis por gastos fixem metas de performance. A fiscalização do cumprimento dessas metas ficaria por conta de um tipo de agência reguladora sem poder punitivo, mas com capacidade de apontar eventuais falhas.
Mas é preciso também, segundo o estudo da Bovespa, que os gestores públicos sejam responsabilizados civilmente se não cumprirem seus contratos sem justificativa aceitável. Hoje, há uma burocracia pouco motivada e apegada a simples formalidades legais. É preciso criar um ambiente em que a inovação e os resultados sejam premiados.
Segundo um estudo da OCDE, nas sociedades modernas existe a necessidade de incentivos de desempenho mais explícitos do que os fornecidos pela burocracia tradicional. Daí a importância das avaliações de desempenho. Elas ajudam a gerir e a controlar os serviços públicos, além de permitir que o governo cumpra seus deveres de divulgar publicamente e se responsabilizar por suas ações.
Essa discussão, de maneira fragmentada, já ocorre em alguns setores do governo com uma visão mais moderna da administração. Por exemplo, a discussão sobre a desvinculação das verbas orçamentárias pode ter um alcance muito maior do que se imagina. Na verdade, o que se está discutindo é a organização do Estado, suas instituições e políticas fiscais.
Formalmente, a idéia de acabar com as vinculações, reintroduzidas na Constituição em 88, tem o objetivo de dar maior agilidade à política econômica. Mas a medida vem gerando uma reação crescente, sobretudo de setores sociais que têm verbas garantidas constitucionalmente para a saúde e educação, por exemplo. Com relação à Saúde, falta há anos uma Lei Complementar, que deveria ser revista a cada cinco anos, exatamente para calibrar a verba com as necessidades.
A tentativa é provar que saúde e educação não precisam de tanta verba quanto as vinculações garantem, mas sim de gestão, previsão orçamentária e relatórios com base em desempenho, medidas adotadas pelos países desenvolvidos para tornar o Estado mais eficiente. Para transformar esses objetivos em realidade, os países da OCDE têm seguido dois caminhos.
1. Alguns governos priorizam o controle contábil, com o estabelecimento de metas formais. Nesses casos, os orçamentos são baseados no desempenho, com uma auditoria nos resultados;
2. Outros defendem uma abordagem mais econômica, com a introdução da competição para melhorar a eficiência do Estado. Para isso, estimulam a contratação de serviços privados, como a terceirização.
Levantamentos da OCDE mostram que as estratégias dos países desenvolvidos para melhorar o desempenho do Estado combinam planejamento, gestão, auditoria de avaliação e desempenho. Os estudos indicam que metas irreais comprometem essa evolução. Muitos sistemas fracassaram porque simplesmente estipularam metas rígidas demais.