O Estado de S. Paulo (16/04/06)
Fernando Dantas
O economista Fábio Giambiagi, um dos maiores especialistas do Brasil em assuntos fiscais, está preocupado com o cumprimento da meta de superávit primário de 4,25% do PIB em 2006. Ele acha que, pela primeira vez desde 1999, o cumprimento está ameaçado, embora ainda aposte que o governo vai atingi-la. "Estamos na marca do pênalti para chegar aos 4,25%", diz.
Esta não é, porém, a maior preocupação fiscal de Giambiagi. Na verdade, olhando para o médio e longo prazo, ele considera que o País está numa encruzilhada. Para crescer mais rápido, é preciso recuperar o investimento público, que atingiu níveis irrisórios nos últimos anos. Mas, para que isto ocorra, há uma única saída saudável: controlar a explosão dos gastos correntes do governo. As outras alternativas, segundo Giambiagi, são "desagradáveis": a diminuição do superávit primário, que colocaria em risco a redução da relação entre a dívida pública e o PIB, ou ainda mais aumento da carga tributária, prejudicial ao crescimento do País.
O problema, para o economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é que controlar as despesas correntes significa hoje conter a escalada dos gastos dito sociais, que incluem as aposentadorias e diversos programas de transferência de renda. Para ele, estas despesas, fortemente vinculadas ao salário mínimo, tem "um caráter assistencialista" e "escassa preocupação em ampliar o espaço de crescimento futuro da economia". A seguir, a entrevista.
Como o sr. vê as chances de cumprimento da meta de superávit primário de 4,25% do PIB em 2006?
Este ano, pela primeira vez, desde 1999, há uma ameaça em relação ao cumprimento estrito das metas. Quando eu digo que há uma ameaça, não estou querendo dizer que a meta não será cumprida. Eu pessoalmente acredito que ela será efetivamente cumprida, mas não podemos fechar os olhos à realidade. Nós já vínhamos numa tendência de crescimento forte do gasto. O ano, neste sentido começou com o pé esquerdo, e se o governo não se cuidar, existe a possibilidade de não cumprirmos a meta.
Quais são os riscos?
Pelo padrão sistematicamente observado desde o início do processo de ajuste fiscal, há oito anos, o governo acumulava fôlego durante os primeiros meses do ano. O superávit primário no primeiro e no segundo trimestre, de modo geral, excedia largamente o que estava programado. Desta forma, o governo estava em situação confortável, na segunda metade do ano, para atender as pressões que sempre existem por mais gastos, sem comprometer a viabilidade do ajuste. Neste ano, o superávit primário observado no primeiro bimestre do ano foi, como porcentual do PIB, muito inferior àquele que se pretende para a meta anual. É evidente que dois meses podem não necessariamente representar algo grave, mas marcam um contraste com anos anteriores.
Mas isto não é típico de anos eleitorais?
Não, o desempenho deste ano também contrasta de forma importante com os anos eleitorais. É verdade que que há uma série de convênios e despesas que têm de ser feitos na primeira metade do ano, e depois são proibidos por lei. Mas, mesmo levando isto em consideração, a situação inspira cuidados. Em 2002, de fato, o ano começou com um crescimento forte do gasto, que depois foi sendo atenuado. Mas o aumento do salário mínimo em 2002 foi muito moderado, ao contrário deste ano, o que significa que o aumento real da despesa previdenciária no segundo semestre de 2006 deve ser muito superior ao que se observou no ano das últimas eleições presidenciais.
Houve descuido na política de gastos?
O sinal amarelo foi aceso. O que preocupa é o fato de que tenha sido tomada uma medida fiscal atrás da outra, envolvendo decisões discricionárias, que poderiam não ter sido tomadas, de aumento de despesas ou de renúncia tributária, sem que nenhuma autoridade tenha dito não a este tipo de demanda. Desde novembro, quando começou esta temporada de bondades, temos tido uma série de notícias, todas positivas para os grupos beneficiários. Nenhuma delas isoladamente é dramática do ponto de vista fiscal, mas no conjunto elas geram um quadro bastante diferente do que se tinha em mente quando foi enviado o projeto orçamentário original de agosto.
Quais são as medidas mais importantes desta "temporada de bondades", e qual o seu custo?
O aumento do salário mínimo para R$ 350, o aumento de 5% para os aposentados que ganham acima de um salário mínimo, a correção da tabela do Imposto de Renda, e os pacotes agrícola e da construção civil. Pelas minhas contas, no caso do governo central, para este ano, a variação de despesas combinada com redução de receitas é da ordem de aproximadamente 0,45% do PIB. Além disto, o superávit primário dos Estados e municípios poderá cair em até 0,2 % do PIB. Juntando uma coisa com a outra, estamos falando de uma redução de primário da ordem de 0,6 a 0,7% do PIB. Levando em consideração que no ano passado fizemos 4,85% de superávit primário, isto nos coloca na marca do pênalti para chegar aos 4,25%.
O sr. tem manifestado preocupação com o aumento de 5% para os aposentados que ganham mais que o mínimo, o que significa um pequeno aumento real. Por quê?
O problema é que, de agora em diante, corremos o sério risco de ter duas disputas políticas extremamente desgastantes para o governo, qualquer que seja o governante de plantão. Uma é o aumento real dos aposentados que ganham o mínimo. Outra, qual é o aumento real dos aposentados que ganham acima do mínimo.
O ministro Mantega disse que a reforma da Previdência não é tão importante, já que parte do aumento recente dos gastos vem de decisões judiciais. Ele acha que o problema pode ser enfrentado com medidas gerenciais. E o sr?
Do ponto de vista macroeconômico, dinheiro não tem carimbo e não interessa se a despesa está relacionada a uma decisão de aumentar o salário mínimo ou à decisão de um juiz. Em segundo lugar, embora as decisões judiciais sejam parte da razão do aumento das despesas do INSS, elas explicam apenas 20% da variação que ocorreu nos últimos três anos. O problema é que a despesa do INSS era de 2,5% do PIB em 1988, perto de 5% no começo do plano Real, 6,5% no final do governo anterior e vai a caminho de ser quase 8% do PIB este ano. Não creio que este problema possa ser enfrentado única e exclusivamente com o eficiente trabalho gerencial que está em curso - a reforma da Previdência é uma necessidade imperativa para o médio e longo prazo.
A sua estimativa é de que as despesas correntes do governo central cheguem a quase 18% do PIB em 2006, saindo de menos de 10% no início dos anos 90. Quais os principais fatores desta expansão?
O que aumentou basicamente foi a Previdência e a assistência social. No Brasil, a classe média acha perfeitamente natural se aposentar aos 50 anos. E ao mesmo tempo, os pobres consideram que a coisa mais natural do mundo é que seus benefícios previdenciários ou assistenciais tenham um aumento real todos os anos, o que não existe no resto do mundo. A pessoa que recebe uma aposentadoria ou benefício de salário mínimo, muitas vezes sem sequer ter contribuído, tem hoje um poder aquisitivo 92% superior ao de 1994. Enquanto isto, o cidadão que trabalha e paga todos os seus impostos em dia, ganha menos na média do que em 1994. Quando a gente analisa estes dados, não é de estranhar que a China e a Índia cresçam 7%, 8%, 9%, e o Brasil tenha este crescimento rastejante. Porque lá eles estão investindo na juventude e na educação, e a gente aqui utiliza uma massa cada vez maior de recursos para colocar na mão de quem está fora do mercado de trabalho.
Mas o aumento dos gastos sociais não tem um lado positivo?
De fato, nós temos uma rede de proteção social que é das mais desenvolvidas da América Latina. Isto explica porque, apesar do baixo crescimento, estamos numa situação do ponto de vista social, melhor do que 10, quinze anos atrás, e não tivemos explosões sociais como outros países na América Latina. Mas isto também explica a mediocridade do nosso crescimento. Porque é um tipo de padrão de despesa de caráter assistencialista com escassa preocupação em ampliar o espaço de crescimento futuro da economia.
Quais, a seu ver, deveriam ser as prioridades da política fiscal do próximo governo?
Ele terá algum espaço para redução da carga tributária, mas que não será maiúsculo. Eu creio que as duas marcas principais em termos fiscais do próximo governo serão a redução expressiva da dívida pública como proporção do PIB - temos todas as condições para que ela seja maior do que observada no governo atual - e um forte crescimento do investimento público. Se queremos crescer mais, é fundamental ampliar o espaço pra o investimento público, em infra-estrutura, estradas, energia elétrica, etc. Aí não há mágica, a matemática é implacável. É preciso reduzir o gasto corrente como proporção do PIB, o que implicaria aumentar o gasto corrente nos próximos anos a uma taxa inferior ao crescimento do PIB. Ou então enfrentar alternativas desagradáveis, como reduzir o superávit primário, o que prejudica o processo de queda da relação entre a dívida pública ou o PIB, ou aumentar ainda mais a carga tributária.