Entre o Wall Street e a rua da Amargura
Dionísio Dias Carneiro*
É ilusório imaginar que o Brasil tirou de letra a grave crise de confiança que se abateu sobre o governo Lula. Duas semanas depois da última tempestade devastadora, o sol não deixou de brilhar para a nave da reeleição, em Wall Street, onde os preços de ativos são produzidos pelos lucros esperados, e na rua da Amargura, onde a ajuda à sobrevivência produz os votos esperados.
O Banco Central (BC) tem desempenhado um papel fundamental nesse processo, pois desligou a economia, no curto prazo, da devastação que destruiu o time de Lula. Ao blindar o BC contra as investidas verbais de seu novo ministro da Fazenda, que ainda está no processo de passar para "o outro lado do balcão", Lula mostrou compreender isso. Aparentemente, há algo de salomônico nessa decisão: a política monetária fica livre para defendê-lo contra os mercados e produzir baixa inflação, enquanto os gastos públicos financiam a caça aos votos. Uma oferenda aos deuses de Wall Street, que nos mandam dólares baratos, outra aos deuses da rua da Amargura, que o aplaudem nas pesquisas de opinião. Ambos lutam por ganhos imediatos e não abrem mão das oportunidades oferecidas pelo governo. Por algum tempo, essa combinação funciona. Tudo o que Lula precisa é satisfazer essas duas fontes de apoio por mais seis meses e correr para o abraço das urnas. Caso sobrevenham mais escândalos, é só jogar cargas ao mar, entre lágrimas e improvisos de dedo em riste para o além, como tem feito todas as vezes que o peso das acusações sobre sua tripulação se agrava e sua imagem fica ameaçada pelo contágio ou pela evidência de cumplicidade.
Enquanto isso, os mercados e os miseráveis, a quem o governo transfere dinheiro de impostos e de dívida nova, preferem ignorar o que está por detrás desse processo, porque, cada um a seu modo, precisam sobreviver. Os comentaristas econômicos e políticos registram os preços da dívida e os resultados das pesquisas, e "la nave va", rumo ao nevoeiro da ingovernabilidade no próximo termo presidencial.
Da perspectiva de prazo mais longo, a rota é tormentosa. No prazo que importa para as eleições, a nave pode esbarrar na fragilidade das concepções de crescimento com distribuição, baseadas no aumento das despesas públicas de que se orgulha o governo. Mas, num prazo maior, o processo de deterioração da qualidade da política econômica produz rombos no casco e lança desconfianças sérias sobre o que esperar de um segundo mandato. Cedo ou tarde, mesmo investidores atraídos pelos ganhos imediatos terão de desconfiar que não haverá sempre solução virtuosa para a guerra de bastidores. O confronto entre a calma de Antonio Palocci e os descontroles verbais da ministra Dilma Rousseff desaguou nas decisões sobre o volume financeiro de restos a pagar, deu tranqüilidade aos gastadores e resultou na deterioração fiscal. Será decrescente a eficácia da política monetária, o que significa maiores frustrações quanto aos juros cadentes.
A diminuição drástica do superávit primário deve prosseguir a partir de maio, como fruto dos aumentos de salário mínimo e das aposentadorias. A combinação de desenvolvimentismo predador (voltado para o curto prazo) e distributivismo demagógico (com renda de transferência, e não melhoria de produtividade para gerar maiores salários) não pode ser compensada pelo nacionalismo protecionista (que usa câmbio e tarifas, e não estímulos à competitividade real). No passado, essa estratégia econômica gerou dívida pública e inflação. Não há sinais de que possa gerar outra coisa. Mas é perfeitamente capaz de reeleger o presidente.
Nos próximos meses, deve-se agravar a distância entre os requisitos fiscais da manutenção de inflação em queda e crescimento em alta e os disparates do ministro da Fazenda. Graças aos esforços dos últimos anos, o governo tem mais espaço para cometer erros, gastar o que economizar com a queda dos juros e sacar contra o estoque de credibilidade construído a duras penas. A nave do governo tem, como rumo, as eleições presidenciais. No horizonte curto, a "visão de longo prazo" virou apenas argumento para violar a responsabilidade fiscal. Essa estratégia eleitoral tem rendido frutos, e Lula não dispõe de outra. Enquanto durarem a demanda por ilusões na rua da Amargura e o otimismo dos mercados, que tem sido alimentado pela ilusão de que o crescimento mundial não tem limites, "la nave va".