Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 21, 2006

VEJA Roberto Pompeu de Toledo Mulher no comando: isso faz diferença?

O caso pioneiro do Chile pode fornecer uma pista na busca de uma resposta a essa questão

A eleição de Michelle Bachelet para presidente do Chile assinala, salvo engano (e é difícil haver engano nessa matéria), a primeira ascensão de uma mulher, em nosso tempo (e talvez em todos os tempos), ao comando de um país. Já se ouve um coro de vozes a reclamar: e Margaret Thatcher? E Indira Gandhi? Resposta: essas são homens, como quem tem um mínimo de discernimento é capaz de constatar. E a nova chanceler da Alemanha, Angela Merkel? Homem, também. E a falecida ex-primeira-ministra de Israel, Golda Meir? Homíssima.

Quando não são homens, as pessoas do sexo feminino alçadas à chefia de nações são sombras. É o caso de Corazón Aquino, nas Filipinas, ou de Violeta Chamorro, na Nicarágua. São pessoas que chegam a uma Presidência da República ou a uma chefia de gabinete por sua condição de "esposas", ou, melhor ainda, de "viúvas". As sobras de prestígio, ou, melhor ainda, a aura de mártir dos maridos, são a razão da elevação delas ao poder. Outro exemplo da espécie, este de conseqüências dramáticas, é o de Isabelita Perón, alçada à Presidência da Argentina na condição de dupla sombra: do marido, Juan Domingo Perón, e da mulher anterior dele, Evita. Era sombra demais para os frágeis ombros da ex-bailarina. Seu governo, marcado pelo caos e pelo arbítrio, ainda de quebra marcou a porta de entrada da Argentina rumo ao inferno do mais cruel de seus períodos militares.

Tirando as monarquias, nas quais em um ou outro país pessoas do sexo feminino são instadas a representar funções semelhantes às de um pano de bandeira, pode-se agregar um terceiro caso – o das meio-mulheres. Estas não são homens nem sombras. Elegeram-se por méritos próprios e, ao que consta (governam países distantes, dos quais temos escassas notícias), exercem seu mandato com competência. É o caso, entre outros, das presidentes da Finlândia (Tarja Halonen) e da Irlanda (Mary McAleese). Ou da ex-primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland. O que as caracteriza como meio-mulheres é que, ao contrário de Michelle Bachelet, não se elegeram, seja por opção pessoal, seja porque a cultura política de seus países prescinde disso, na plena e cabal condição de mulher.

Bachelet é um caso único e pioneiro porque se elegeu recendendo a mulher, alardeando-se mulher. Ao saudar o povo reunido para festejar a vitória, em Santiago, suas primeiras palavras foram: "Boa noite, amigos e amigas. Quem pensaria? Quem pensaria, vinte, dez ou cinco anos atrás, que o Chile elegeria uma mulher para presidente?". Ser mulher foi uma plataforma política em sua campanha. Mas não uma mulher qualquer. Bachelet é divorciada, tem três filhos de dois casamentos e, para completar, confessa-se agnóstica. É a mulher que vem com tudo, não a mulher que chega por baixo.

Ela é tão mulher que convida a perguntas como se tem namorado ou se é possível ocupar cargos políticos e cuidar dos filhos. Mas é tão mulher que se recusa a responder a elas. "Você não faria essa pergunta a um homem", costuma replicar. (No Brasil, a senadora Heloísa Helena vive assediada por perguntas desse tipo e, curiosamente, dada sua pugnacidade, aceita dar-lhes resposta.)

Existe um modo feminino de governar? Um mundo governado por mulheres seria diferente? Atentemos ao governo Bachelet. Ele poderá fornecer algumas pistas na investigação dessas questões. Governos são entidades nascidas à sombra da predominância dos machos e desenvolvidas sob o impacto de esmagadoras doses de testosterona. Das disputas decididas na força aos conchavos tramados em salões tomados pelo cheiro de uísque e pela fumaça de charuto, o poder político foi território reservado ao sexo masculino. Mulheres-homens, como Thatcher ou Golda Meir, aprenderam desde cedo a nadar como peixes, nesse ambiente, e por isso governaram como machas. Suas experiências são tão inúteis, para o efeito de discernir uma possível especificidade feminina no modo de governar, quanto as das mulheres "sombras", cujo destino é ser teleguiadas pelos machos arranchados à sua volta.

O Chile vive uma quadra que o distingue nesse assunto. O presidente que ora encerra seu mandato, Ricardo Lagos, teve quatro mulheres em seu gabinete de dezesseis ministros. Não é pouco, considerando-se as tradições da América Latina, mas mais importante é que, das quatro, duas se destacaram a ponto de se impor como as melhores candidatas à sucessão – Bachelet, que foi ministra da Saúde e da Defesa (da Defesa!, ela que é socialista e filha de um general morto nos cárceres do general Pinochet), e Soledad Alvear, a ministra das Relações Exteriores. A prévia da Concertación, a coligação que governava e continuará governando o país, se deu entre as duas, o que já configurava um caso raro. Bachelet, de sua parte, promete formar um gabinete "paritário", quer dizer, distribuído entre homens e mulheres em igual proporção. Nesse processo, alguns enxergam uma espécie de revolução cultural. Dá-lhe, Bachelet! Fiquemos de olho.

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