Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 04, 2006

JK e a carona Por Reinaldo Azevedo

PRIMEIRA LEITURA

Começou ontem a minissérie JK, na TV Globo. Começou como sempre, com um daqueles partos sofridos que costumam dar início a novelas e minisséries de época. É um truque conhecido da dramaturgia, um chavão que ainda funciona. É o mito do Nazareno. Mensagem: nenhuma mãe sofre em vão. O fruto do seu ventre terá pela frente um grande desafio e há de deixar uma grande obra. A vida, nesse tipo de produto ficcional, é cheia de indícios, premonições, verdades escritas previamente. Tudo, enfim, como se obedecesse (e obedece) a um roteiro.

Huuummm, nem pode ser diferente. Uma apreensão puramente realista da vida renderia muito pouco. Como explicar que o acidente tem mais importância na história do que reconhecemos habitualmente? Não estamos preparados para conviver com isso. Vem, portanto, por aí aquele tantinho de mistificação sem a qual não se pode prender o espectador por alguns dias. Vou passear ainda um pouco. Mas pretendo falar aqui é do uso que os atores contemporâneos, os da política, não os da Globo, vão fazer de JK, o presidente da Globo, não o da política.

Em 1992, Anos Rebeldes, de Gilberto Braga, criou uma confusão danada entre ficção e realidade. Tudo saiu à perfeição. Os brucutus da ditadura fizeram o perfeito contraste com jovens idealistas e inocentes — o caráter também terrorista e ditatorial da esquerda foi omitido —, e o cavalo metafórico era óbvio e manso demais para não ser cavalgado. Deu em caras-pintadas nas ruas, exigindo a deposição de Fernando Collor: por ironia, o primeiro presidente eleito diretamente depois do regime militar acabou identificado com a causa da ditadura. E todos os que se opuseram ao Caçador de Marajás se deixaram contaminar por aquela santidade idealista que emanava dos doces terroristas de Braga. Depusemos um presidente, justamente, mas ainda dentro de um roteiro de ficção.

Por tudo que li e ouvi, vem por aí um JK escoimado de todos os defeitos da política: um presidente que, sabemos, nunca houve, e um político que não há nem haverá. Não: podem tirar o cavalo da chuva. Ninguém vai me pegar aqui defendendo que obras de ficção devam fidelidade à história. Isso é uma besteira suprema. Nem obras de história são fiéis à história porquanto são discursos sobre a realidade. Não estou entre aqueles que acreditaram em tudo o que leram em Plutarco ou Suetônio. A vida é romance. E a história também.

Chamo a atenção para o fato de que a série JK abre o ano político. Um ano em que há eleições presidenciais. Foi o último presidente eleito democraticamente a concluir um mandato antes do golpe militar de 1964. Em muitos aspectos, é um anti-Lula: pobre, mas esforçado, estudou; nas contendas políticas, parecia sempre achar o prudente caminho do meio; sua imagem tinha apelos mais intelectualizados e urbanos do que a do Apedeuta. Namorador e galante, sua agitada vida sexual não será capturada pelo prisma do adultério, mas do bom sedutor. Sua vocação política, é quase certo, parecerá despida de qualquer outro interesse ou artimanha que não servir ao Brasil: por patriotismo, coragem e caráter cordato. Emergirá das telas um homem vindo do interior de Minas Gerais para ser o fundador de uma nova capital.

Não interessará, quero crer, o golpe militar do marechal Lott que, no fim das contas, lhe garantiu a posse. Golpe, com efeito, preventivo, já que outro estava em curso. Ao longo de seu governo, houve várias crises militares, de que a revolta de Aragarças (pesquisem a respeito) foi a mais notória. Entre seus protagonistas estava João Paulo Moreira Burnier, o mesmo que, nos dias que antecederam o AI-5, quis explodir o Gasômetro, no Rio de Janeiro. Exilou-se junto com outros conspiradores e foi anistiado no governo Jânio Quadros, que sucedeu Juscelino. O candidato do construtor de Brasília, batido pelo homem da vassoura, foi o mesmo Lott, militar, que lhe garantiu a posse. Havia algo de errado com a democracia gerenciada por Juscelino.

Esse Juscelino que se entregou à aventura de Brasília — crianças, lamento: foi uma tolice —, que endividou pesadamente o país para construir a nova capital, que entregou a seu sucessor um governo com pressão inflacionária (tudo isso é verdade, não mera campanha da UDN), que se ocupou, na reta final, de algumas manobras que buscassem garantir posteriormente seu retorno, que fez vistas mais ou menos grossas à anarquia militar, esse presidente e esse político, quero crer, vão ficar longe das telas em benefício do homem que persegue (e realiza) o seu sonho, que abre o país ao capital estrangeiro e que ganha a alcunha de "presidente bossa-nova" porque vê seu mandato coincidir com um notável momento da cultura brasileira. Fala-se, diga-se, em particular, do Rio de Janeiro. Curiosamente, a cidade foi a mais punida pelo sonho de Juscelino. Jamais se levantou do golpe de ver mudar-se dali a capital federal.

Obras de ficção, reitero, não são documento. Vamos ficar atentos, isto sim, é para ver quem vai tentar pegar carona nas asas mitificadas do Juscelino de ficção, que parece ter chegado ao poder apenas porque era um bom sujeito, limpinho, caroável, tranqüilo, que não ofendia ninguém. Vamos ver, e é isto o que interessa, se alguém vai tentar vitaminar a própria biografia com esse mito urbano vindo do interior.

[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 3 de janeiro de 2006.

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