As formulações presentes nestes cantos refletem todo um posicionamento que mistura religião com política. Em termos filosóficos, estamos diante de uma forma do teológico-político que parte do princípio de que o absoluto, o reino de Deus, pode se realizar na Terra, sendo-lhe, para isto, necessário um instrumento que leve a cabo essa proposta de absolutização da política, tendo na CPT e no MST os seus veículos. O problema consiste na crença de que seja possível a realização sobre a Terra de uma comunidade humana perfeita, receba ela o nome de reino de Deus, de socialismo ou de comunismo.
O Canto 222 se intitula Companheiros de Guevara, numa clara afinidade de posições, pois "(...) então ouviremos da história o grito de glória/da nossa utopia". O título desse canto já é suficientemente eloqüente por louvar Guevara como se fosse um profeta e mártir da Igreja. Aliás, bizarra reverência religiosa de alguém que procurou, com seus companheiros, destruir a Igreja Católica em Cuba e em cujo embasamento teórico marxista reside a idéia de que a religião é uma forma de alienação da humanidade. "(...) grande será nosso espanto de ver o encanto/do bom comandante chegando na hora certa/com a voz desperta nossa rebeldia/companheiros de Guevara trilhando a estrada/por um novo dia". Guevara fica na memória daqueles que o veneram, pois, assim, ele sempre chegará a seu objetivo por intermédio dos que captaram e retransmitiram a sua mensagem, vivida como atual por todos os que fazem parte dessa comunidade político-religiosa. Quando o objetivo da CPT e do MST consiste na realização do reino de Deus ou no socialismo, toda política de atendimento a propostas que possibilitariam a melhoria de vida da população rural pobre é considerada insuficiente, porque sempre distante e infinitamente distante do reino de Deus ou da sociedade sem classes. Se o capitalismo é o pecado, qualquer política capitalista no campo brasileiro traz uma mácula originária, que só poderia ser apagada por uma revolução, uma espécie de redenção, que anunciaria, para o mundo, que uma nova humanidade é possível.
O Canto 215, ao louvar a ação dos "sem-terra", louva a "causa nobre da revolução". Ao derrubar as "cercas da morte", as delimitações da propriedade privada, a ação política ganha um contorno propriamente revolucionário, o de estabelecer uma outra forma de propriedade, a coletiva, que romperia com os padrões do capitalismo, estabelecendo uma sociedade socialista ou comunista. Eis por que, aliás, a CPT e o MST não lutam pela propriedade privada dos assentados, esses não possuindo a titularidade das terras, pois isso contrariaria uma concepção socialista baseada na propriedade coletiva como meta a ser alcançada.
O Canto 9: "Somos povo escolhido/e na fronte assinalado/com o nome do Senhor/que caminha ao nosso lado." A perspectiva bíblica é francamente afirmada, pois o "povo" do MST e da CPT é considerado como o "povo escolhido". O MST e a CPT colocam-se como os instrumentos de uma nova mensagem, de uma "nova Aliança", que conduziria a humanidade aos caminhos do Senhor. A palavra do MST/CPT é, então, considerada como uma forma de verdade absoluta que não daria lugar a contestações, legitimando, desde uma perspectiva teológica, invasões de terras, depredações, cárceres privados, formação de quadrilhas, uso generalizado da violência, que seriam tidos por instrumentos necessários de uma orientação teológico-política. Não haveria, sob essa ótica, nenhuma possibilidade de contestação dessa política num jogo democrático, pois a disparidade de posições estaria posta desde o início: uma representa o absoluto e as outras seriam meras formas relativas da política estatal ou partidária.
O Canto 24: "Quem rouba a terra, rouba a vida do pobre,/que necessita da terra para viver./A terra é vida para quem trabalha nela!/Roubar a terra é fazer o povo sofrer."
A noção de roubo de terra, na linguagem da CPT e do MST, significa toda e qualquer propriedade privada, pois essa nada mais é do que a delimitação de terras, que seriam originariamente coletivas. Deus teria criado o mundo segundo os princípios da propriedade coletiva. Essa seria conforme a "natureza", enquanto a privada seria "contra-natura". Ou seja, todo proprietário privado de terras, produtiva ou não, extensa ou não, seria um "ladrão", alguém que contraria as leis divinas. Segue-se, então, que os defensores da propriedade coletiva, os que derrubam cercas, agem segundo os desígnios da providência, procurando fazer com que a propriedade readquira o seu sentido originário. Invadir terras se torna, assim, algo moralmente justificável, pretendido e mesmo querido por Deus. Ladrões não são os que se apropriam da propriedade alheia, mas os que dela detêm títulos legais. Eis por que as invasões do MST e da CPT seriam, desde sempre, religiosamente justificáveis. As leis que regem a propriedade privada e o estado de direito seriam meros obstáculos interpostos no caminho da redenção.