Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Guilherme Fiuza A república da paranóia

 
no mínimo volta à primeira página Guilherme Fiuza  



18.01.2006  |  Está cada vez mais claro que o PT não quis seqüestrar o Estado brasileiro por mal. Depois de muito tempo na oposição, enfrentando a opressão do sistema desde o nascimento do partido, José Dirceu e companhia aprenderam muito mais a reagir do que a agir. Quase toda iniciativa é pautada como prevenção ao que, fatalmente, virá em sentido contrário. Vamos ocupar o Estado antes que ele nos engula e nos estraçalhe, como sempre quis fazer. É mais ou menos isso.

O problema do reflexo pavloviano do PT é que ele aprendeu a associar a campainha ao choque. Mesmo retirado o choque, cada vez que soa a campainha o partido se contrai em reação à descarga elétrica. E mesmo sem campainha, o PT continua reagindo ao nada. É como a parábola do homem que parou na estrada à noite com o pneu do carro furado. Ele não tinha macaco para fazer a troca, e avistou a luz de uma única casa a cem metros de distância. Foi andando até lá, imaginando no caminho que o morador poderia se assustar com ele. Assustado, talvez não abrisse a porta. Apesar dos apelos, o dono da casa daria uma desculpa, diria que seu macaco estava quebrado e lhe diria para caminhar até o posto no quilômetro seguinte. Quando de fato chegou à casa na beira da estrada, o homem tocou a campainha e foi logo falando ao morador: "Vá para o inferno, você e o seu macaco!"

O Brasil está descobrindo aos poucos o inimaginável. Lula, o presidente eleito com 52 milhões de votos após dar uma surra no seu oponente, aclamado por uma campanha redentora, quase mítica, se sente oprimido pelo sistema. O núcleo duro, já não tão duro, parece acreditar mesmo que os fazedores de cabeças têm um preconceito intransponível contra o ex-operário, e por isso a imprensa o estigmatiza. Dirceu já tinha dado algumas pistas desse conceito, em suas eventuais reclamações da mídia burguesa e em sua tentativa de "corrigir" o rumo da imprensa com mão de ferro. Delúbio, quando ainda acendia charuto com nota de 100 dólares, já denunciara o complô das elites e direita para abater o projeto petista. Agora, o assessor do presidente que lê os jornais para ele bota a boca no mundo: "Lula sempre foi muito maltratado pela imprensa."

Está tudo explicado. O homem que traduz o noticiário para Lula vê Lula como uma vítima da imprensa. A função do professor Bernardo Kucinski é nobre, e perfeitamente justificável. Em sua rotina avassaladora, um presidente precisa mesmo de assessores que façam um certo mapeamento e uma primeira digestão da torrente de notícias. Mas deve ser mesmo difícil resistir à tentação de dar um passo além da simples seleção e hierarquização das matérias. Uma interpretação sutil, uma sacação genial, alguns pitacos decisivos que podem fazer a cabeça do presidente. Lula se apresenta a toda hora como vítima da imprensa, já tendo inclusive feito um paralelo arriscado com a mídia da Venezuela, que se uniu para derrubar Hugo Chávez. Começa a ficar mais fácil enxergar o nascedouro dessa mania de perseguição.

Lula é um dos personagens mais mimados da história da imprensa brasileira. Perto dele, Lech Walesa, o herói do Sindicato Solidariedade, é um lateral-esquerdo do Criciúma. O ex-líder do ABC é quase dono da história do movimento sindical, e freqüentemente é apresentado como um dos símbolos da derrubada da ditadura militar – o que vem a ser um doce engano. Jamais um mesmo homem público brasileiro foi investido, por correntes tão díspares, de tantos atributos elevados, como honra, justiça social, sentimento de pátria, sabedoria política, pureza ideológica, bondade e espiritualidade. Um verdadeiro arrastão virtuoso, captado e exaustivamente disseminado pela imprensa nacional.

Descobrir que este homem, e os que o cercam, consideram-no uma vítima da imprensa é no mínimo comovente. Não deixa de ser doloroso ver alguém padecendo no paraíso, assim como é sempre duro assistir ao sofrimento de um Napoleão de hospício – não porque lhe dizem que não é Napoleão, mas porque insistem em afirmar que sua espada é apenas uma vassoura de piaçava, e o faxineiro está precisando dela. É muita humilhação.

Lula é humilhado pelo tratamento preconceituoso que sofre da imprensa, que não o respeita como pessoa, é o que revela publicamente o professor Kucinski. Pode-se imaginar os esforços, entre quatro paredes, para remar contra essa injustiça: reaja, presidente; o senhor pode; o que é um diploma, afinal? Eurico Gaspar Dutra também não falava uma palavra de inglês, o que é que tem isso demais? Não se deixe abater por esse bando de invejosos, que no fundo queriam era ter um AeroLula só para eles.

O que mais impressiona é que o assessor que traduz a imprensa para Lula, o homem que serve o noticiário ao presidente junto com o café-da-manhã, acredita sinceramente que os principais espaços da mídia estão ocupados pelos jornalistas que rezam por uma mesma e determinada cartilha. "Eles estão em todos os espaços ao mesmo tempo, porque estão falando aquilo que o poder quer que eles falem." (note-se que "o poder" não é, evidentemente, o presidente da República, nem o governo central, com todas as suas prerrogativas quase imperiais que o regime brasileiro lhe outorga. O "poder" é outra coisa, provavelmente horripilante, portanto é melhor nem olhar).

Se a imprensa está mesmo dominada, de ponta a ponta, por jornalistas de rabo preso, que alugam sua pena e seu caráter ao grande capital, em detrimento do povo e de Lula, Delúbio tinha razão: há de fato uma conspiração das elites contra a verdadeira democracia brasileira. Com campainha, choque elétrico e a mais pavloviana das paranóias.

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