Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 22, 2006

FERREIRA GULLAR A lição do inverno

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 A Europa e a Ásia estão, nestes dias, sepultadas sob a neve, e eu, que nada entendo das questões climáticas e planetárias, me pergunto: mas não se diz que a Terra está cada dia mais quente? Os entendidos saberão responder a essa pergunta, enquanto, de minha parte, alimento a esperança de que ainda há de demorar muito até que a calota polar derreta e os mares comecem a submergir as cidades costeiras.
Mas não é exatamente disso que quero falar, eu, bicho tropical, que só vim a conhecer uma peça de roupa chamada suéter aos 21 anos, ao mudar-me para o Rio de Janeiro. Quero falar do inverno russo, do frio que experimentei em Moscou, já homem maduro, em comparação com o qual os 16 ou 18 graus do inverno carioca eram quase verão. Já imaginou um sujeito nascido e criado em São Luís do Maranhão, numa temperatura média de 32 graus, exposto de repente a um frio de 15 graus abaixo de zero?
Exposto é modo de dizer, uma vez que eu trazia coladas ao corpo camiseta e ceroulas de lã, sobre as quais vestia calças de tecido grosso, camisa e um paletó pesado. E, por cima de tudo isso, um capote mais pesado ainda, forrado de lã. Era assim que eu, com quase o dobro do peso, saía da "abcejite" para ir às aulas no Instituto Marxista-Leninista, que ficava a umas três quadras de distância.
Ah, sim, esqueci de falar das botas também forradas de pêlo, com um solado da grossura de dois dedos. Por precaução, calçava duas meias em vez de uma. Caminhar empacotado desse jeito sobre o gelo das calçadas de Moscou exigia equilíbrio e cautela. A cabeça era protegida por uma "chapka" -aquele gorro de pêlo espesso, forrado de seda, com duas abas que se abotoam sob o queixo, de modo a proteger as orelhas do frio. Na primeira manhã de inverno que saí à rua sem abaixar as abas do gorro, comecei a ter a sensação estranha de que minhas orelhas eram de plástico gelado e que, se alguém lhes desse uma cacholeta, se partiriam facilmente. Já o nariz, esse era mais difícil de proteger e, se ventava, então, parecia congelado, dormente, como se não fosse meu.
Mas frio mesmo eu peguei foi em Leningrado (hoje São Petersburgo): 30 graus abaixo de zero. Não obstante, aquela manhã era mais clara e esplendente que qualquer outra, devido ao reflexo da luz na neve que tudo cobria. Fomos advertidos de que não poderíamos fumar na rua porque, ao tragar, poderíamos puxar para o pulmão um ar tão gelado que poderia provocar uma pneumonia. Mas, quando cruzamos a ponte sobre o rio Neva, vimos sobre seu leito congelado um grupo de pessoas vestindo calções e maiôs como se estivessem numa praia. Não acreditei no que via: tinham cavado um buraco no gelo e, através dele, mergulhavam no rio, cujas águas corriam por baixo do gelo. "Isso é gente da Sibéria", explicou a guia. "Estão acostumados com temperatura de 70 graus negativos". Senti um calafrio.
Devo admitir que, mais que o frio, o que desagradava no inverno em Moscou era acordar numa manhã que parecia noite. Depois ia clareando, mas, amanhecer mesmo, só às 10h. E, como se não bastasse, às 15h começava a anoitecer. Era, portanto, já de noite quando saía do instituto, às 16h, de volta ao quarto que dividia com um companheiro mais jovem, paulista, operário de profissão, tão ou mais magro que eu. Meu nome de guerra era Cláudio, e o dele, se bem lembro, Luís. Findo o curso, ele, que chegara bem antes de mim, se foi de Moscou para retomar sua vida legal no Brasil, reassumir seu nome verdadeiro, que jamais soube nem saberei qual era. A vida clandestina, entre outros incômodos, tem mais esse, de fazermos amizade com pessoas que não podemos saber quem são, às quais nos afeiçoamos sabendo que vamos perdê-las de vista para sempre. Mas a gente termina por se acostumar, já que também éramos todos, uns para os outros, personagens fictícios de uma aventura real.
Com os outros não sei como foi, mas, comigo, custei a me dar conta de que realmente estava em Moscou, na legendária cidade que, na minha mente, parecia mais ficção que realidade. Certo dia, passeando na Praça Vermelha, ao ver as torres do Kremlin, espantei-me: "Será que estou mesmo aqui?". Só me convenci de que estava morando na capital da URSS certa tarde, quando, da janela da "abcejite", vi passar uma senhora e uma menina, com um guarda-sol aberto. Estava claro que se tratava de mãe e filha, a caminho, talvez, de um cinema. Caí na real.
Mas foi em abril, quando os primeiros brotos surgiram nos galhos ressequidos pelo frio, que voltei a sorrir. E não demorou muito até que me deparasse, certa manhã, com a rua toda verde -árvores, jardins, canteiros- de um verde virente, novinho em folha. Era a primavera que chegava a ensinar-me que a vida é um eterno renascer. Aqui no Brasil, país da eterna primavera, mal nos damos conta disso. Claro que o sabemos, mas saber é diferente de viver. Essa notícia de que o inverno acaba, a tristeza acaba e o verde volta a sorrir foi o inverno russo que me sussurrou ao ouvido, naquele abril de 1972.

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