Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 19, 2005

VEJA Você entregaria a rede a eles?




O Brasil alia-se a burocratas da
ONU e a ditaduras para tentar
consertar o que não está quebrado


Carlos Rydlewski


Eric Feferberg/AFP
TEIA DE BUROCRATAS
Annan na Tunísia: governos criticam controle dos EUA



Não há exagero em definir a internet como a ferramenta mais democrática e acessível desenvolvida pelo homem e colocada à disposição da liberdade e do conhecimento:

Há 1 bilhão de internautas no mundo. Só entre 2000 e 2003, o acréscimo de usuários da rede foi de 322 milhões, sendo 66% desse total em países em desenvolvimento.

O rádio levou trinta anos para chegar a 60 milhões de pessoas. A televisão demorou quinze anos. Já a internet atingiu 600 milhões de usuários, ou um contingente dez vezes maior, na metade do tempo.

Em 2005, a soma dos negócios que passaram pela internet, o que inclui transações entre empresas e governos, chegará a 5 trilhões de dólares, o equivalente ao PIB do Japão, a segunda maior economia do planeta.





A web tem sido uma pedra no sapato de regimes antidemocráticos. Os chineses, por exemplo, usaram a comunicação pela rede para obrigar seu governo a reconhecer a gravidade da gripe asiática, a sars.


Roslan Rahman/AFP
AP
IMPERIALISTAS?
Impacto da web chega a escola islâmica em Cingapura. O barbudo Postel cuidou sozinho da rede por trinta anos

Por esses motivos, é inquietante o fato de o governo brasileiro ter-se juntado a um grupo de países com pouca ou nenhuma tradição democrática – como China, Cuba, Irã, Líbia, Arábia Saudita, Síria e até Zimbábue – para reivindicar mudanças na gestão de internet, para a qual nunca fizeram contribuições dignas de registro. Essas nações, que contaram com a adesão de última hora da União Européia, querem aparentemente desafiar o papel predominante exercido pelos Estados Unidos na administração da rede e transferi-lo para um órgão multilateral vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU).

A estratégia ganhou o mundo na semana passada, durante o evento promovido pela própria ONU na Tunísia, chamado Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS, na sigla em inglês). Ocorre que uma mudança desse tipo poderia deformar a internet. Por isso mesmo, felizmente, a proposta não foi aceita na íntegra pelos participantes da WSIS. No encontro, decidiu-se empurrar o problema com a barriga – novas discussões vão ocorrer em 2006. Mas ainda assim brasileiros e seus companheiros conseguiram politizar, com o clássico discurso antiimperialista, um debate que deveria ser estritamente técnico. E essa é uma guinada danosa e potencialmente perigosa.

O controle da rede está em território americano mas não sob o controle do governo. Afirmar o contrário equivale a dizer que o lendário show de música de Woodstock, realizado no estado de Nova York, em 1969, foi um projeto do governo dos EUA para dominar o rock mundial. A verdade é que a internet nasceu nos Estados Unidos como um projeto militar para manter um sistema paralelo de comunicações funcionando em caso de guerra nuclear, mas evoluiu para seu formato atual devido a sucessivas "pequenas grandes" invenções de engenheiros e acadêmicos geniais de muitas nacionalidades. É por isso que o molde cultural da rede tem pouco a ver com a burocracia dos quartéis e guarda relações muito mais estreitas com o ideário libertário e criativo de Woodstock.

Esse caráter pouco convencional pode ser ilustrado pelo comportamento de um dos pioneiros da internet, o físico inglês Tim Berners-Lee. Ele foi o criador do hipertexto e da World Wide Web, conhecida pela sigla www. Mas não quis patentear as invenções. "Isso nunca me preocupou. Se a tecnologia tivesse ficado nas minhas mãos, a web não teria decolado", disse. Outra evidência desse espírito criador foi dada pelo professor de ciência da computação Jon Postel. Ele tocou praticamente sozinho a internet por trinta anos. Foi apenas em 1998, no governo Clinton, que a rede passou a ser administrada por uma entidade civil. Numa calorosa discussão (os debates foram tão intensos que Postel morreu após um ataque cardíaco), criou-se a Corporação da Internet para a Designação de Nomes e Números (Icann, na abreviação em inglês), uma ONG ligada ao Departamento de Comércio americano. A entidade tem um conselho formado por quinze integrantes – entre eles, dois brasileiros. A Icann cuida do sistema de nomes e endereços que faz a internet funcionar (veja quadro na página anterior).

A instituição não está acima de críticas. Mas tem o mérito de manter a web operando de forma eficiente e democrática. "As pessoas têm de entender que a Icann é uma entidade diferente, que já abriga grupos dos mais diversos, como políticos, empresários e técnicos. O que não pode ocorrer é que os debates sejam politizados. Esse é um risco considerável", disse a VEJA Vinton Cerf, um dos pais da internet e membro da Icann. Vanda Scartezini, representante brasileira na entidade, acrescenta: "Podemos aumentar a participação dos governos na instituição, mas não colocar em risco o que já existe".

Não é o que pensam os integrantes da comitiva brasileira na WSIS – liderada pelo ministro Gilberto Gil, cujo feito na web se resume à composição da música Pela Internet. Um dos representantes verde-amarelos no evento, Sérgio Rosa, do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), chegou a propor a criação no Brasil de uma internet 2, uma espécie de rede paralela, caso os Estados Unidos não cedessem o controle sobre a web. "Eu sempre trabalhei com as minorias. Os países fracos têm de se unir para enfrentar os fortes", diz.

As discussões sobre os destinos da internet não vão se esgotar tão cedo. Estimativas apontam que o mercado em torno da venda de nomes de domínio dos sites arrecada 1 bilhão de dólares por ano. Todo o sistema de telefonia global está caminhando para dentro da rede, com o avanço da tecnologia de voz sobre protocolo da internet (VoIP, em inglês). Isso tudo aguça o apetite pelo controle da rede. Os governos também não sabem lidar com um fenômeno como a internet, que não se prende a limites geográficos. Há algum tempo, Nicholas Negroponte, do Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), definiu a internet como um terremoto de grau superior a 10 na escala Richter das transformações econômicas. Ele acertou, mas não previu que tal tremor se daria também no campo político.

Com reportagem de Chrystiane Silva e Francisco Mendes

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