Uma decisão republicana
Marcelo Semer
A utilização da função pública para a consecução de interesses ou benefícios privados assenta o caráter anti-republicano das nomeações de parentes de juízes. Pesquisa realizada pela Fundação Joaquim Nabuco e pela Associação Juízes para a Democracia, em Pernambuco, revelou, às vésperas da decisão do CNJ, que, entre os funcionários do Tribunal de Justiça daquele Estado que exerciam cargos de confiança e não eram servidores efetivos, 40% dos nomeados eram parentes de desembargadores. Embora não se tenha um levantamento parecido em outros Estados, é de imaginar, até pela recorrência do tema no noticiário nacional há décadas, que o quadro não seja incomum.
Suspeitando que apenas uma orientação não seria capaz de ser acolhida pelos Judiciários Brasil afora, o CNJ determinou desde logo a exoneração de todos os parentes, fixando prazo de 90 dias. Em vários tribunais já se antevêem argumentos contrários ao cumprimento da ordem. Os fundamentos da irresignação são vários: a exoneração não está definida em lei; a resolução não poderia ser retroativa e atingir os atuais ocupantes dos cargos; a demissão ao mesmo tempo de tantos funcionários poderia causar um atraso sem precedentes no Judiciário.
Ora, a decisão se funda na interpretação que de há muito os tribunais deveriam ter dado ao artigo 37 da Constituição federal, em especial à rigidez dos princípios da moralidade e impessoalidade. O ingresso de parentes pela via do comissionamento, muitas vezes em exercício com o próprio magistrado familiar, é uma afronta à impessoalidade e um dano irreparável à moralidade administrativa. Muito maior que o eventual retardo na fase de transição para a nomeação de outros servidores sem laços familiares, ou, de preferência, aprovados em concursos públicos. O prazo para a exoneração não é exíguo, se contarmos que a Constituição federal foi promulgada em 1988. Dando-se a nomeação, ademais, a título precário, não há direito à estabilidade nos cargos.
A decisão do CNJ de pôr fim ao nepotismo não é arbitrária nem descabida. Está inserida entre as competências que lhe foram conferidas pela Emenda 45, entre as quais a de zelar pelo cumprimento do artigo 37 da Constituição federal nos tribunais, inclusive para desconstituir atos administrativos que o violem.
É verdade que o nepotismo não se abriga exclusivamente no Judiciário. Ele está presente no Executivo e, despudoradamente, no Legislativo. Um ex-presidente da Câmara dos Deputados se jactava de sua capacidade de arrumar emprego para parentes, todos supostamente capazes e competentes, mas não concursados. O deputado, forçado a renunciar pela publicidade de outras mazelas ainda mais graves, está, no entanto, longe de ser uma exceção entre os pares que o haviam elegido. Tendo a decisão do CNJ se originado da interpretação dos princípios que regem a administração pública, firmados pela Constituição federal, é de esperar que os outros Poderes a tomem como paradigma para expurgar o nepotismo também em seus domínios, de modo que a moralidade não seja preservada na administração pública apenas pela metade. Ou que, não o fazendo, o Judiciário decida pela ilegalidade de tais nomeações.
Do CNJ se aguarda que prossiga na tarefa de fazer a administração judiciária cumprir a Constituição e os comandos da Lei Orgânica da Magistratura, sem ceder a corporativismos ou ao pragmatismo das cúpulas. Em suas mãos repousa agora uma representação para fazer cumprir o princípio do "juiz natural", tão desrespeitado em diversos Estados da Federação. Há no País juízes exercendo cargos de livre designação, podendo ser afastados ou removidos sem nenhum motivo, ainda que durante o julgamento de um processo, mesmo que a Constituição garanta a inamovibilidade. E existem membros da cúpula dos tribunais concentrando indevidos poderes para decisões de urgência.
O princípio do "juiz natural" visa a preservar, fundamentalmente, a imparcialidade do julgamento. A necessidade de distribuir por sorteio os processos a juízes previamente definidos se justifica para evitar escolha de julgadores pelas partes ou de processos pelo próprio juiz, como se noticia ter ocorrido no TRT paulista. A distribuição imediata de processos, consignada na Emenda 45, impede que um único juiz seja escolhido para decidir todas as matérias liminares em tribunais, mesmo que seja ele o presidente ou o vice-presidente da Corte.
Recentemente, foi noticiado que uma medida liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) foi decidida à noite por seu presidente, antes que o processo pudesse ser distribuído ao relator sorteado, seu juiz natural. O fato poderia ter assumido maiores proporções porque, à vista de insinuação de supostos interesses político-partidários, o comportamento do primeiro mandatário do Judiciário nacional tem sido severamente questionado, como se evidencia em editorial deste mesmo jornal do último dia 21/10.
Tal como o nepotismo e a promoção por indicações políticas, a prática de livre designação de juízes e a concentração de poder nas mãos de um membro da cúpula também afrontam atributos que o Judiciário tem de mais caros: a independência do magistrado e a imparcialidade de suas decisões.