Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, novembro 22, 2005

Parece rudimentar

O GLOBO

Parece rudimentar

ILAN GOLDFAJN

Foi o termo "rudimentar" que me chamou a atenção. O tom mais agressivo da ministra Dilma Rousseff para referir-se ao projeto fiscal de longo prazo dos seus colegas foi talvez acima do planejado. Mas refletiu um estado de espírito — a ausência de constrangimento na crítica à política econômica do seu próprio governo. Não só parecia ter confiança no apoio coletivo — do presidente Lula, dos outros ministros, da totalidade do seu partido e até da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) — mas também nos argumentos da sua crítica: (i) não podemos manter a economia crescendo com as atuais restrições aos gastos; (ii) a atual política fiscal está "enxugando gelo", pois o superávit é usado para pagar os juros; e (iii) a proposta de uma política fiscal de longo prazo é "rudimentar" e tem que ser "combinada com os russos".

Com o intuito de contribuir para o debate, cabem aqui algumas considerações. Em primeiro lugar, além dos campeões dos juros altos, também temos sido os campeões mundiais do aumento das despesas públicas primárias. E nada me convence que não há relação entre os dois campeonatos. A despesa primária do governo central, que não considera os gastos com os juros, está crescendo 8% ao ano acima da inflação. Esse é um ritmo insustentável: em 10 anos as despesas mais do que dobrariam em termos reais. Segundo dados da Moodys, desde 1997 a despesa primária do governo central cresceu quase 5% do PIB, acima de quase todos os países emergentes.

Como o governo não cria recursos, maiores gastos significam maior carga tributária. Não adianta se iludir. Se a carga tributária não subir imediatamente, haverá um déficit que aumentará a dívida que terá que ser paga no futuro, com juros e correção monetária. No futuro haverá mais juros, impostos e limites aos gastos. A observação de que o superávit primário é usado para pagar os juros é equivalente a dizer que, no passado, gastamos mais do que arrecadamos e estamos pagando a conta hoje. Se reduzirmos o superávit hoje, a situação no futuro piora ainda mais.

Nos últimos anos, tentamos todos os atalhos, num processo penoso de autodescoberta dos limites do financiamento ao aumento dos gastos públicos. Primeiro, foi o financiamento via alta inflação que gerou pobreza e concentração de renda. Passamos ao financiamento via endividamento público que gerou a atual dívida alta e cara. No limite do endividamento, fizemos o ajuste fiscal através do aumento da carga tributária, que tem sido um entrave ao crescimento. O processo se esgotou.

A idéia de que podemos reduzir os juros para "gerar" mais recursos esbarra no aumento da inflação, que é o imposto mais regressivo que temos, pois é pago desproporcionalmente pelos mais pobres. A solução é reduzir os juros na medida que a inflação permitir. Mas isto não significa que não haja opções de política econômica. Uma perspectiva de controle do aumento de gastos deve permitir uma trajetória mais rápida de redução de juros ao longo dos próximos anos.

No Brasil, os exercícios de simulação mostram que o essencial para estabilizar a dívida é preservar o superávit primário nos próximos anos. Para isso, é fundamental um programa de controle de gastos de longo prazo. O problema é que não há ainda uma conscientização da necessidade de reduzir os gastos. Temos, sim, reações às conseqüências deste processo de crescimento das despesas: há aversão da sociedade ao aumento da carga tributária e, acredito, à volta da inflação. Mas não passamos ainda da revolta contra os sintomas para a luta contra as causas.

A evidência internacional mostra que, ao contrário da visão no Brasil, um ajuste fiscal através da redução das despesas pode não ser recessivo. Ao contrário, há casos clássicos da década de 80, como a Dinamarca e a Irlanda, em que ajustes fiscais baseados em corte de gastos geraram um crescimento forte, através do aumento do investimento privado e maior confiança do consumidor. Para uma amostra de países da OECD, estima-se que a redução das despesas de um ponto percentual do PIB aumenta o investimento em 0,16% do PIB.

Em suma, está claro que as despesas estão crescendo a taxas insustentáveis, tendo já esgotado a nossa capacidade de financiá-las: chegamos a uma carga tributária que paralisa o crescimento, a uma dívida pública que requer pagamentos substanciais de juros e a uma aversão à inflação após anos de imposto inflacionário. Na situação atual, o Estado perdeu a sua capacidade de investir. Portanto, a forma mais flexível e menos custosa (senão a única) de sair deste imbróglio é desenhar um plano de longo prazo que contenha o crescimento dos gastos. Não compreender isto me parece rudimentar, meu caro Watson, rudimentar.
ILAN GOLDFAJN é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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