Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 18, 2005

"O governo Lula faz muito barulho por nada" Fernando Henrique Cardoso




Entrevista de Fernando Henrique Cardoso, Revista Agenda 45 

O Brasil ainda paga o preço pela demagogia do PT na oposição. Essa é a avaliação do ex-presidente Fernando Herinque Cardoso que, em entrevista exclusiva à revista Agenda 45, fala sobre a crise política que se abateu sobre o Planalto, o Congresso e o projeto de poder do PT. "Tal projeto pode conviver com uma fachada de democracia formal, mas que corrói a alma do sistema democrático", analisou.

Na campanha de 2002, o candidato do PT vendeu a ilusão de que o seu governo seria marcado pela implantação de programas e projetos capazes de solucionar todos os problemas brasileiros. Em seu entendimento, em que medida a frustração gerada na população brasileira fragiliza o Poder Executivo como instituição e provoca o desencanto com o regime democrático?

Por maior que seja o dano à imagem do governo, do Congresso e dos políticos, não sinto que haja descrença generalizada no regime democrático. As pessoas sabem que a democracia lhes oferece as melhores ferramentas para mudar o que lhes parece importante e necessário. Não querem e não vão abrir mão disso de jeito nenhum. O eleitor, este sim, será mais exigente. E terá melhores condições para fazer sua escolha. Todos os principais possíveis candidatos à presidência já passaram pelo teste do governo. Eles serão julgados pela capacidade que tenham demonstrado de governar e pela credibilidade que essa experiência anterior empreste às suas propostas de governo. Haverá menos espaço para vender ilusões. Em resumo, vejo nas próximas eleições uma oportunidade de fortalecimento da democracia e de restabelecimento de uma agenda de desenvolvimento.

O legado da política macroeconômica construída pelo governo do PSDB foi preservado. No entanto, o Brasil está deixando de aproveitar a excepcional conjuntura econômica internacional para crescer com mais intensidade. A partir de que momento o governo do PT se perdeu? O que ainda pode, ou deveria, ser feito para o país aproveitar essa conjuntura econômica mundial?

O Brasil ainda paga o preço pela demagogia do PT na oposição. As bravatas de então levaram o PT no governo a ser ultra-ortodoxo na condução da política econômica. A política fiscal foi apertada a ponto de praticamente eliminar o investimento público federal e comprometer serviços fundamentais, a exemplo da vigilância sanitária, como agora se vê com o ressurgimento de focos de aftosa no Mato Grosso do Sul. A dose de juros tem sido cavalar. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que reduz investimentos (e eleva a carga tributária), o governo aumenta o gasto financeiro. Essa é uma combinação ruim para o crescimento. Apesar disso, o país está crescendo. Isso porque estávamos preparados para o crescimento (que herança maldita, que nada) e porque tivemos a sorte de encontrar uma situação muito boa na economia internacional (juros baixos, preços de commodities em alta etc). Mas a verdade é que estamos crescendo à metade do que cresce a maioria dos países emergentes. Não vou nem falar da China, mas veja o Chile e a Argentina, crescendo entre 6% e 8%, enquanto nós crescemos entre 3% e 4%. Essa diferença de três a quatro pontos é o "custo PT". Custo da ultra-ortodoxia na política econômica, custo da incapacidade de estabelecer regras do jogo claras para o investidor privado e custo da incompetência e, não raro, improbidade na gestão da coisa pública.

A administração Lula promoveu o aparelhamento da máquina administrativa do estado pelo PT. Essa opção, consentida pelo presidente Lula, objetivava criar as bases para o controle do Estado com vistas à implantação de um projeto de poder autoritário e de longo curso? Ou os petistas estavam apenas ávidos de poder?

Há um pouco desses dois ingredientes no projeto de poder do PT: de um lado, ganas de ascender socialmente não pelo mérito, mas pelas oportunidades grandes ou pequenas que o poder oferece; de outro, uma concepção autoritária da política, que a vê como conquista e concentração dos instrumentos de poder do estado e fortalecimento de estruturas verticais de mando sobre indivíduos e organizações. É um projeto que pode conviver com uma fachada de democracia formal, mas que corrói a alma do sistema democrático. Isso, por várias razões: porque não se funda na persuasão, mas principalmente no temor, em lealdades pessoais e no interesse; porque enxerga no pluralismo da sociedade e no equilíbrio de poderes antes um defeito que uma virtude; porque, enfim, confunde o Estado com o partido, em benefício deste e em prejuízo da sociedade. Salvo melhor juízo, o governo do PT deu testemunhos inequívocos de puerilidade no relacionamento com o Congresso Nacional.

Para o senhor, em que medida o despreparo do presidente e de seu círculo mais íntimo de conselheiros paralisou o Poder Legislativo, sujou-lhe a imagem e gerou, na sociedade, o sentimento de que a classe política, como um todo, não é confiável?

Lula sempre manifestou um solene desprezo pelo Congresso. Basta lembrar a infeliz frase dos 300 picaretas. Como deputado, foi um parlamentar apagado, de um só mandato. O Congresso e os partidos são instituições fundamentais da democracia. O presidente tem a responsabilidade de organizar a maioria para governar, mas também tem o dever, como democrata e chefe de Estado, de contribuir para fortalecer a legitimidade dos partidos e do Congresso. Não pode tratar parlamentar como mercadoria e fazer do parlamento um balcão. Para não enveredar por esse caminho sem volta, é preciso fazer alianças com os maiores partidos, de preferência antes das eleições e em torno de um programa comum. Foi o que eu fiz. Por inexperiência ou circunstância, não me cabe julgar, Lula infelizmente fez o inverso. O pior é que o fez sem necessidade: meu governo tinha uma agenda de reformas para aprovar. Qual é de fato a agenda de reformas do governo Lula?

Até que ponto a crise criada pelo governo do PT atingiu, deleteriamente, o Congresso? E qual o prazo necessário para o Poder Legislativo purificar-se dos pecados veniais e mortais que cometeu e que contra ele foram perpetrados?

O pior da crise é que a única defesa que restou ao governo e seu partido é tentar convencer a opinião pública de que "são todos iguais", governo, aliados e oposição. O risco é a sociedade dizer "que se vayan todos". A oposição e, creio eu, a maioria do Congresso estão fazendo o que precisa ser feito. O projeto de poder do PT pode conviver com uma fachada de democracia, mas corrói a alma do sistema democrático para não cair nessa armadilha. E o que precisa ser feito não é só cassar alguns mandatos. O Brasil quer saber o que de fato aconteceu. Já se sabe que foram movimentados dezenas ou centenas de milhões de dinheiro sujo. Sabe-se, pelo menos em parte, quem recebeu. Falta descobrir de onde veio todo esse dinheiro. Ou antes, por onde passou, porque não cabe dúvida de que ele saiu, em última análise, dos cofres públicos.

Ao discursar sobre o aumento das exportações, Lula busca levar as pessoas a acreditar que esse dado beneficia a todos, indistintamente. Na sua opinião, em que momento a classe média entenderá que o aumento das exportações, respeitado o perfil atual do setor, não impacta a sua renda, beneficiando, na verdade, segmentos restritos?

O aumento das exportações é bom para toda a sociedade brasileira. A renda que gera se espalha pela economia, e os dólares reforçam as contas externas do país. Com o tempo, o sucesso das exportações atrairá um número cada vez maior de empresas para o setor. Isso é muito positivo. A questão é que o crescimento das exportações, cantado em verso e prosa pelo presidente, pouco ou nada tem a ver com os méritos do seu governo. As exportações aumentaram porque, de um lado, a economia mundial está crescendo e os preços das nossas commodities de exportação estão em alta; de outro, porque o câmbio flutuante, os acordos comerciais e as reformas estruturais introduzidas em meu governo fortaleceram a economia brasileira. Se alguma coisa esse governo tem feito é tirar o fôlego de longo prazo das exportações, com uma política de juros indevidamente altos que leva a uma valorização excessiva do real frente ao dólar. Isso, mais à frente, pode nos custar caro. Mesmo que as exportações brasileiras tenham continuado a se expandir em 2005, este ano foi jogado fora pelo governo Lula. Encurralado, tornou-se um ente imóvel.

Por sua experiência frente à administração do estado brasileiro, quais os prejuízos decorrentes dessa paralisia?

É muito difícil estabelecer uma agenda de governo no último ano de mandato, sobretudo quando essa agenda jamais foi definida com clareza nos anos anteriores. O debate eleitoral e as eleições do próximo ano representam, no entanto, uma oportunidade para restabelecer uma agenda de desenvolvimento para o país, pelas razões que já apontei acima. O povo brasileiro não tem medo de ser feliz. Ele não quer é ser ludibriado. O PSDB entra nessa disputa com todas as credenciais. Somos comprovadamente bons de governo, não temos de desdizer nada do que dissemos, nem escamotear nada do que fizemos. Vamos apresentar uma agenda clara, sem a pretensão ridícula de reinventar a roda, mas que aponte um caminho seguro e ambicioso de desenvolvimento para o país. O governo Lula engatou a marcha a ré quanto à implantação de uma política educacional adequada e ao fortalecimento das agências reguladoras.

Nessas questões, qual deve ser o compromisso do PSDB, posto que somente quem governou por oito anos tem a capacidade e o discernimento de formular propostas capazes de atender os reclamos da sociedade?

Para lidar com o problema da desigualdade, é preciso fortalecer outras instituições do estado e da sociedade civil que contrabalancem a lógica da acumulação de riqueza dos mercados. Na área educacional, devemos restabelecer a prioridade para o ensino fundamental e avançar na melhoria da qualidade do ensino. Em 1999, atingimos praticamente 100% de matrículas entre as crianças de 7 a 14 anos. Isso foi possível, entre outras coisas, por causa do Fundef, aprovado a despeito do voto contrário do PT. O Fundef também trouxe melhoria para o salário dos professores, sobretudo nos estados mais pobres. O que este governo fez para dar continuidade ao avanço do ensino fundamental? Cabe ao próximo governo retomá-lo. Ainda hoje, de cada 100 crianças que começam, apenas 63 completam o ensino fundamental, por repetência e/ou evasão. Isso tem a ver com a qualidade do ensino. Precisamos aumentar o tempo de permanência na escola e voltar a valorizar o magistério. É preciso retomar de onde paramos porque, nestes últimos três anos, pouco ou nada foi feito. Na área econômica, é preciso desatar o nó que vem sufocando o investimento em infra-estrutura e comprometendo o potencial de crescimento do país. Falam mal das privatizações, mas os grandes investimentos em infra-estrutura nos últimos dez anos se deram nos setores que foram privatizados em meu governo, sobretudo telecomunicações e portos. Neste governo, não se faz privatização e não há investimento público. Vá comparar os investimentos do orçamento federal entre 1995 e 2002 e entre 2003 e 2005 para ver a diferença. O pior é que não há horizonte. Onde estão os projetos concretos de parcerias público-privadas, iniciativa que o governo apresentou como o maná dos deuses e o PSDB tratou de aperfeiçoar no Senado para livrá-la dos piores vícios de origem? Como tudo neste governo, se fez muito barulho por nada.

Na campanha eleitoral de 2006, qual o discurso que o PSDB deve, necessariamente, privilegiar para se credenciar junto aos nichos eleitorais que votaram em Lula sem nunca terem cultivado relações próximas ou distantes com o ideário petista?

Antes de mais nada, o PSDB deve reforçar seus laços de confiança com a sociedade. Nós nunca mentimos sobre como vemos o mundo e o que faríamos no governo. Nossa visão do mundo é social-democrática e é contemporânea. Reconhecemos a importância do mercado como instituição que a história decantou para fazer da competição entre pessoas e grupos o motor da geração de riqueza e da inovação. Mas sabemos que o mercado não resolve todos os problemas coletivos. Para lidar com esses problemas, sobretudo com o problema da desigualdade, é preciso fortalecer outras instituições do estado e da sociedade civil que contrabalancem a lógica de acumulação de riqueza dos mercados. Na sociedade contemporânea, não é a burocracia estatal, em sua autosuficiência, quem pode cumprir esse papel. A construção de um mundo melhor depende cada vez mais de parcerias entre governo e sociedade civil. É preciso criar instituições que ampliem as oportunidades de participação da sociedade nas decisões. A partir da reafirmação dessa visão, vamos dizer com franqueza o que o PSDB fará se voltar ao poder. Sem renegar o que ajudou a construir com o Plano Real, fortalecendo a economia de mercado, é preciso dizer como escapar da atual armadilha econômica: a relação entre taxa de câmbio, dívida interna elevada, taxas de juros altas e controle da inflação, que nos condena a taxas de crescimento medíocres e desemprego estabilizado em nível elevado. Se fosse fácil escapar dela, tanto meu governo como o atual já teriam escapado. Será preciso juntar outra vez competência técnica e habilidade política para desarma-la, como foi feito com o Plano Real. Com a mesma franqueza, devemos alertar a sociedade para a crise fiscal que está sendo semeada pelo atual governo quando, por baixo dos superávits primários para impressionar o mercado financeiro, deixa o déficit da Previdência explodir e infla os gastos com pessoal. O próximo governo, por um lado, terá que desarmar essa bomba-relógio. Por outro lado, terá que afrouxar o garrote dos juros da dívida interna para que, com um crescimento econômico mais robusto, seja possível pensar numa reforma tributária que não resulte em mais impostos e menor efeito distributivo. Como investir mais em infra-estrutura? Como aperfeiçoar a rede pública da saúde e da educação? Como fortalecer a agricultura familiar? Como extirpar os bolsões de miséria? Esses são os compromissos social-democráticos contemporâneos. Por fim, o PSDB deve apresentar suas propostas para reforçar a confiança nas instituições democráticas. Isso inclui a reforma do sistema eleitoral e partidário, mas também a questão crítica da segurança pública e o acesso rápido às decisões judiciais.

Na medida em que inexistem políticas sociais efetivas no governo Lula, e apenas uma atuação paternalista, quais as propostas que o PSDB necessita consolidar para aperfeiçoar a rede pública de saúde e educação, fortalecer a economia familiar e extirpar os bolsões de miséria?

Primeiro, é preciso persistência para não jogar fora os avanços que conseguimos na universalização do ensino fundamental e da atenção básica à saúde. Manter um fluxo crescente de recursos para essas prioridades durante os próximos anos e décadas, como outros países em desenvolvimento fizeram, e dar tempo de os resultados aparecerem. Extirpar os bolsões de miséria, tanto nas grandes cidades como no interior do Brasil, exige outro tipo de medidas complementando as políticas universalizantes nos campos da educação e da saúde. As políticas de transferência de renda do tipo Bolsa Escola, agora rebatizada de Bolsa Família, dão um alívio imediato, mas também não são suficientes. Acredito que é possível avançar mais na luta contra a miséria disseminando as iniciativas de desenvolvimento local já experimentadas com êxito em centenas de municípios, distritos e bairros pelo Brasil. Essas iniciativas combinam investimentos sociais e em infra-estrutura econômica com projetos de geração de emprego e renda, sempre em parcerias do governo com as comunidades locais. Se o Brasil inteiro estiver crescendo mais, essa é uma boa forma de fazer a dinâmica do crescimento chegar aos bolsões de miséria.

Um das questões mais agudas no Brasil contemporâneo é a da segurança pública. A população das cidades que estão assoladas pela violência, pela criminalidade, exigem medidas urgentes para a criação de um ambiente de relativa paz, de relativa tranqüilidade, de salvaguarda pessoal. Em suas preocupações, como o senhor concebe uma política capaz de ser, de fato transformada, em ações cotidianas contra a falta de segurança pública?

A violência hoje no Brasil tem duas vertentes, que às vezes confluem. Uma é a do crime organizado em torno do tráfico de drogas e de armas, do contrabando, da fraude fiscal, da corrupção no setor público. Esse, para ser enfrentado, requer mais entrosamento das áreas especializadas da polícia federal, polícias civis, receita, fiscalização bancária, além de mais vigilância nos portos, aeroportos e nas fronteiras. A outra vertente é a do crime mais ou menos desorganizado que assola principalmente bairros pobres das grandes cidades. Exemplos como o do município de Diadema, na região metropolitana de São Paulo, e do Jardim Ângela, na cidade de São Paulo, mostram que é possível diminuir muito a violência a partir de um entrosamento maior, nesse caso entre a polícia, a administração municipal e a sociedade civil. É claro que, para isso, precisa haver confiança da população na administração e na polícia, o que requer uma atitude muito firme dos governantes contra a corrupção, inclusive a corrupção policial. Os governadores e prefeitos do PSDB têm boas credenciais nessa matéria e, por isso, têm autoridade para liderar a administração, a polícia e a sociedade na luta contra a violência.

A crise política em que o país foi submergido evidencia a necessidade de se reformar o sistema eleitoral e partidário. Qual seria a maneira ideal de promover essa reforma? Seria oportuno atentar para os benefícios que o parlamentarismo pode gerar para a vida pública brasileira?

Receio que, se houvesse um novo plebiscito hoje, nessa crise política que o governo e seu partido criaram, mas jogaram no colo do Congresso, o parlamentarismo perderia ainda mais feio do que em 1993. Para que, no futuro, se dê uma nova chance ao parlamentarismo, precisamos antes de mais nada curar as feridas do presidencialismo. O PSDB sempre levantou o tema da reforma eleitoral. Muitos tucanos defenderam a adoção de um sistema misto, proporcional e distrital, semelhante ao alemão. Mais recentemente, o PSDB estimulou a proposta de um sistema proporcional de lista fechada. A verdade é que quase que qualquer alternativa parece preferível ao nosso sistema proporcional com lista aberta, que faz da eleição de deputados e vereadores uma guerra de todos contra todos dentro do mesmo partido. O problema é que tem sido difícil conseguir consenso para qualquer dessas alternativas no Congresso. Para romper a inércia, seria preciso uma mobilização forte da sociedade. O próximo Presidente poderia estimular essa mobilização a partir de uma proposta de reforma eleitoral defendida durante a campanha de 2006, para valer em 2010. Outro caminho possível seria começar a reforma pelo nível municipal, por exemplo, introduzindo o voto distrital para vereador. Devemos intensificar a discussão dessas alternativas dentro do PSDB nos próximos meses para entrar no processo eleitoral do ano que vem com uma posição tomada.

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