Folha de S. Paulo (18/11/05)
Quando acompanhamos os fatos históricos, salta à vista o fenômeno a que chamo de "passar do ponto". Aprendi essa expressão com uma velha cozinheira que trabalhava na casa de meus pais muitos anos atrás. Ela dizia que o maior perigo em sua atividade era "passar do ponto", ou seja, cozinhar mais do que o necessário um determinado alimento. Quando isso acontecia, um prato saboroso podia virar um enorme fracasso.
Muitos anos depois, já como estudante de engenharia na Escola Politécnica de São Paulo, voltei a tomar contato com o fenômeno "passar do ponto". Agora não no campo da culinária, mas sim como um fenômeno mais sofisticado que é o das mudanças nas propriedades dos materiais, estudado pela física. Lembro-me do exemplo de uma barra de ferro submetida a um aquecimento continuado. Até certo ponto, a barra de ferro continuava a ter as mesmas características do material original; mas, se passássemos de uma certa temperatura, haveria uma mudança radical nas suas características originais.
Quando me tornei por motivação profissional um analista das coisas da política e da economia, percebi que esse mesmo fenômeno de "passar do ponto" existia nesse importante setor da atividade humana. Aprendi que a identificação do momento em que fenômenos econômicos e políticos mudam de natureza é muito mais complexa que a dos que afligiam a cozinheira de minha mãe ou um engenheiro mecânico que nunca fui. Os fatos históricos me ensinaram a importância de acompanhar esses momentos de inflexão que ocorrem de tempos em tempos.
Exemplifico. Quando se acompanha a evolução da criação da Europa Unida, ao longo dos últimos 50 anos, e procura-se entender a crise atual por que passa a Europa, fica clara a armadilha representada pelo "passar do ponto". Na década dos 50 do século passado, alguns políticos e economistas europeus perceberam que precisavam fazer alguma coisa para enfrentar o poderio econômico americano que emergia da Segunda Guerra Mundial ao lado da fraqueza européia. Era um projeto eminentemente econômico.
Posteriormente, com o sucesso no campo da economia, o projeto de integração foi estendido ao campo político. Durante um longo período, as ações dos governos europeus desenvolveram-se nesses dois campos, chegando-se à situação de uma moeda única e de fronteiras abertas entre as diversas nações. Mas a integração política, via um Parlamento e um governo europeu e uma única Constituição, foi demais para as sociedades nacionais e o processo entrou em crise. Claramente havia passado do ponto, como diria minha querida tia Inácia.
Vou usar essa mesma metodologia para analisar o caminhar do ministro Palocci e sua política econômica. Ela serve sob medida para entender a crise que está vivendo hoje. A oposição explícita da ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, e o desembarque da Fiesp do grupo de apoio do ministro são fatos graves e que mostram que os adversários da política econômica oficial resolveram atacar o ministro da Fazenda. Na busca das causas desse ataque ao até então ministro mais forte do governo Lula, chegamos facilmente à constatação de que a ortodoxia da Fazenda "passou do ponto". Identifico três campos em que isso ocorreu: o do aumento dos impostos, o dos juros absurdos e o do controle sobre o Orçamento federal de 2005.
O primeiro "ponto" ocorreu há alguns meses, quando a Receita Federal quis aumentar os impostos com a famosa medida provisória número 232; o segundo "ponto" não percebido por Palocci foi o alto nível de juros reais operado pelo Banco Central e seu efeito sobre a atividade econômica; finalmente, o terceiro "ponto" ultrapassado foi o excessivo contingenciamento do Orçamento, resultando no superávit primário de mais de 6% do PIB obtido até o mês de setembro passado.
Como nos pratos preparados na casa de minha mãe, na barra de ferro de meu professor de física e na condução da integração européia, a política de Palocci, ao passar do ponto, criou as condições para ser questionada dentro e fora do governo. Espero que tenha percebido isso.
Luiz Carlos Mendonça de Barros, 62, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).