Como aconselharia Ivan Lessa, nunca peça fogo a um petista. Nem o chame de amigo. Sobretudo se for ministro. É você perguntar "tem fogo, amigo?", e ele pode te cobrir de cacetada. "Fogo amigo" é o curioso fenômeno que, se não assola, pelo menos preocupa a soldadesca americana, empenhada que está em livrar o mundo dos inimigos da liberdade. Segundo a contagem do Pentágono, desde a 2ª Guerra Mundial 25% das baixas entre os soldados americanos são conseqüência do fogo, dos tiros e bombas que, inadvertida e insensatamente, eles mesmos disparam contra os próprios companheiros de farda. É esse o tal fogo amigo, friendly fire. Na sua copiosa entrevista radiofônica de sexta-feira, perguntou-se ao presidente Lula sobre as críticas que a ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, e ministro da Fazenda, Antonio Palocci, vêm trocando. Ele respondeu: "Eu não me preocupo com a divergência, acho que ela é salutar; é saudável que as pessoas expressem o seu pensamento, até que esse comportamento não prejudique a totalidade e o conjunto do governo". (Antes de prosseguir, sublinhe-se que a expressão "a totalidade e o conjunto" é um primor; parece título de um péssimo livro de metafísica.) Perguntaram-lhe então para que lado ele pende na pendenga rousseff-palocciana. O presidente disse que não está do lado de nenhum dos dois, e sim "do lado do povo brasileiro". Donde se depreende que tanto Palocci como Rousseff estão contra o povo brasileiro. Lula explicou como seria resolvida a desavença. "Convocamos uma reunião com os ministros que estão divergindo e resolvemos o problema", disse, "porque aí transformamos a divergência numa política pública do governo, e todos passarão a defendê-la." Ou seja, a divergência vai virar política de governo. Viva o fogo amigo. Vai voar bala para todo lado. Desde a criação do partido, lá se vai um quarto de século, uma das principais críticas da direita é que o PT é um saco de gatos, pois junta sindicalistas (Lula, Luiz Gushiken e cia.), católicos (Plínio de Arruda Sampaio e Hélio Bicudo), evangélicos (Benedita da Silva), trotskistas (Miguel Rossetto), ex-terroristas (Dilma Rousseff), castristas (José Dirceu) e independentes de todas as colorações (Palocci, Tarso Genro etc). A crítica virou paroxismo durante a campanha presidencial, quando os mais nervosinhos profetizaram que o PT não conseguiria governar, tantas são as facções e alas do partido. A profecia não se realizou. Houve divergências internas. Elas foram resolvidas, depois de discussões e votações, com a expulsão da senadora Heloísa Helena e dos grupúsculos e militantes que gravitam a seu redor. O PT governa do jeito que bem entende. Um jeito que gerou a crise política. Com o escândalo do mensalão, a direita jogou rapidamente no lixo os ataques ao faccionismo petista. Passou a acusar o PT de ser um partido de tipo bolchevique ou stalinista. Um partido de disciplinados militantes leninistas, interessados tão-somente em nomear outros militantes, igualmente puros e duros, para postos-chave. Seria o aparelhamento do Estado. Na interpretação tucano-pefelista, a corrupção perpetrada por quadros do PT seria uma decorrência da insopitável vocação ditatorial do partido, produto direto de sua horrenda marca de nascença: o socialismo, que não passa de uma máscara para o comunismo, ideologia nefanda que prega a destruição dos valores ocidentais e cristãos. A falta de consistência da crítica é flagrante: ou bem se considera o PT um partido centralizado, ou então ele é uma barafunda de tendências, chegadas a um fogo amigo. Não dá para ele ser as duas coisas ao mesmo tempo. Na época em que os bichos falavam e os comunistas comiam criancinhas, no entanto, o fogo amigo da esquerda era encarado como, rezava o jargão, expressões do processo histórico. Assim, a socialdemocracia nasceu da explosão da Internacional dos Trabalhadores, onde se digladiavam marxistas e anarquistas. O bolchevismo surgiu como fração da socialdemocracia, interessada em promover a revolução, e não em reformar o capitalismo. E o stalinismo foi a resultante histórica (vale dizer: necessária) da vitória de uma casta social parasitária sob a velha guarda bolchevique. O fogo amigo petista deve então ser explicado por meio do velho e alquebrado conceito de luta de classes? Não parece. Até onde a vista alcança, as classes sociais brasileiras estão, em termos políticos, paradonas. A crise está restrita às CPIs e adjacências, o que inclui o Planalto, e ecoa tão-somente na imprensa. Como hipótese, pode se ressuscitar outro conceito, o do bonapartismo, para entender o fogo amigo. Na definição clássica (vide O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte), o bonapartismo é a expressão de um impasse social. Nele, as classes não conseguem hegemonia política. Um líder carismático, demagogo e oportunista joga então classes, partidos, facções e políticos uns contra os outros. Ele atiça a divisão, se beneficia dela e se coloca acima do jogo político, para representar abstratamente a "nação" e exercer o poder. Ao jogar de maneira oportunista um ministro contra o outro, e ao se colocar demagogicamente "do lado do povo" e acima dos discordantes, o presidente Lula parece desenvolver uma política de tinturas bonapartistas. Há um problema com essa hipótese. Seria preciso acreditar que a divergência ministerial expressa um movimento real, enraizado na sociedade. A saber, seria necessário acreditar que Dilma Rousseff defende os interesses da indústria (que quer juros baixos e investimentos estatais) e dos trabalhadores (que se beneficiariam com a eventual criação de empregos), enquanto Palocci seria agente das finanças internacionais e nacionais (que estão bem satisfeitas com a sua política econômica). Não dá para acreditar, é ridículo demais. Além do que o líder bonapartista, na regra, é um ditador. Caso de Napoleão, de seu sobrinho Luís Bonaparte, de Stalin. E Lula é um democrata. O seu bonapartismo seria, pois, sui generis. Esse bonapartismo peculiar expressaria interesses bem mais imediatos, e tacanhos. Palocci quer se manter no cargo, com poder incontrastável, para, se Lula bobear, se apresentar como candidato à Presidência. Dilma Rousseff também quer ficar no governo, de preferência com mais poder. E Lula, igualmente, quer ficar no Planalto um segundo mandato, que lhe seria mais fácil conseguir desfrutando da credibilidade de Palocci entre os poderosos – e também com as verbas que Rousseff defende, para com elas incrementar obras e serviços, úteis em época eleitoral. É fogo, amigo.
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domingo, novembro 20, 2005
Mario Sergio Conti Bonapartismo de Lula: é fogo, amigo
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