O Planalto foi esperto ao invocar a queda da Bolsa e a alta do dólar na segunda-feira - por motivos não relacionados com o cerco ao ministro, aliás - para justificar a antecipação da sua fala, sob o argumento de que não se podia permitir que a crise contaminasse a economia, e quanto antes ele falasse e arquivasse de vez os três pedidos de demissão que teria apresentado ao chefe na semana passada, tanto menores seriam as razões para desassossego dos agentes econômicos, à espera do desfecho do caso Palocci. Daí se criou uma expectativa injustificada de que ontem seria o Dia D do ministro - e, quem sabe, da política de rigor fiscal, associada, no Brasil e no exterior, antes a ele do que ao presidente que não cessa de se vangloriar dos seus resultados (neste caso, justificadamente).
Essa expectativa não se justificava porque, apesar da proverbial palha que parte a espinha do camelo já sobrecarregado, não havia hipótese de que o destino de Palocci e, por tabela, o da política econômica se decidissem em um evento singular (escrevemos antes de se iniciar a sabatina).
Não é assim que as coisas funcionam. De um lado, nem a mais convincente das defesas tem o poder de evaporar, de um sopro, as acusações que as motivaram, muito menos de impedir a irrupção de fatos novos. De outro lado, ficando tudo num lusco-fusco, a oposição realista teria incentivo para aceitar um acordo com o governo a fim de refazer a esgarçada blindagem que vinha protegendo o ministro nesse meio ano de crise.
Mais adiante, o que se apurar dos atos de Palocci antes de se tornar ministro e condestável do governo Lula, poderá vir a provocar sua queda, se então ainda for ministro. Mas, por enquanto, o que decidirá sua saída ou permanência será a prioridade das prioridades do presidente: a reeleição. Ou melhor, o que Lula julgar melhor para chegar lá.
Restam poucas dúvidas de que o melhor dos mundos para Lula, tal como ele parece enxergá-lo, seria Palocci sem, ou com muito menos paloccismo. Se ele achasse o contrário - a rota para mais quatro anos no Planalto passa pelo paloccismo, com ou sem Palocci - não teria agido como agiu desde que a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, atacou frontalmente a política econômica na já célebre entrevista ao Estado. A ponto de se suspeitar que ela falou com o consentimento ou até o estímulo do presidente.
Lula deixou Palocci ao sol e ao sereno. Mandou vazar que dissera a ele e a ela que não se hostilizassem em público - como se ambos o tivessem feito. E mandou vazar uma nota desidratada, segundo a qual promete manter a política econômica e o seu gestor. Só depois que o ministro - já abatido com as últimas peripécias dos seus "amigos" de Ribeirão Preto - reagiu ao "fogo amigo" de Dilma pedindo as contas, ele considerou "suicídio" a sua demissão. Independentemente do que se passou ontem no Senado, o presidente-candidato terá de decidir se considera a integridade da política econômica o seu capital eleitoral mais precioso, ou um estorvo em potencial para os seus planos.
Quando parece considerar vantajoso transigir com a ortodoxia - para reanimar o seu partido, majoritariamente antipaloccista, e para ter um argumento novo a oferecer ao PMDB -, Lula deixa a nítida impressão de querer se aproveitar da vulnerabilidade em que o passado do ministro o mergulhou para dar corda aos defensores da mudança das políticas fiscal e monetária. Se estivermos enganados e Palocci for obrigado a sair contra a vontade de Lula, o seu eventual sucessor, em nome da credibilidade do governo, terá que ser mais paloccista do que ele.
Loteamento das agências
Políticos da base aliada batalham furiosamente pelo direito de nomear diretores para agências reguladoras - aquelas entidades criadas, nos anos 90, para cuidar tecnicamente de serviços de infra-estrutura, como transportes, energia e telecomunicações, e também do setor de petróleo. Se tiverem sucesso, poderão liquidar um dos principais projetos de modernização das instituições do Estado lançados na década passada. O Brasil dará mais um passo para trás, graças à frouxidão e aos erros estratégicos do atual governo.
Estão vagos 13 cargos de diretores em 7 agências e 2 no Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes. Mais uma vaga será aberta em dezembro na Agência Nacional de Saúde. O Executivo deveria ter apontado os ocupantes de alguns desses postos há tempos. Mas preferiu adiar as decisões, para faturar politicamente em negociações com partidos aliados. O governo errou o cálculo e perdeu o momento certo de resolver o assunto. Agora tem de enfrentar pressões em vez de simplesmente indicar os nomes de sua preferência. Arranjou um problema político para si e um risco administrativo para o País.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca definiu com suficiente clareza sua opinião sobre as agências. Antes de sua posse, políticos do PT criticaram a autonomia operacional das entidades reguladoras. O controle político, prometeram, seria retomado em breve. O presidente Lula referiu-se ao assunto, criticamente, denunciando uma "terceirização" de funções do governo.
O presidente estava errado, obviamente. Nunca houve essa "terceirização". Havia-se tentado reproduzir no Brasil um esquema bem-sucedido em economias avançadas. Pretendia-se, com a criação das agências, despolitizar a supervisão de certos mercados muito especiais, para maior segurança dos investidores, em seus planos de longo prazo, e também dos consumidores.
Faltava, no entanto, ao se iniciar o mandato do presidente Lula, completar a regulamentação do sistema de agências. As normas em vigor eram insuficientes para consolidar as condições gerais de funcionamento das novas entidades. Só um ministro, no atual governo, assumiu claramente a defesa da concepção original das agências, como entidades com diretores selecionados por critérios técnicos, com mandato e independência operacional. Foi o ministro da Fazenda, Antonio Palocci.
As agências teriam status semelhante ao projetado para o Banco Central. Poderiam cumprir sua função reguladora sem sofrer interferências políticas e sem ficar sujeitas à mudança de humores no primeiro escalão do Executivo. Seriam órgãos de Estado, não de governo, e o mandato de seus diretores seria, de preferência, não coincidente com o do presidente da República .
Desde o início da gestão petista ocorreram investidas contra a autonomia operacional das agências. Foram várias as tentativas de subordiná-las às conveniências políticas de ministros ou do governo. Além disso, o projeto de regulamentação tramitou lentamente, como se ninguém, no mundo oficial, tivesse interesse em resolver o assunto.
Ao adiar as indicações para várias diretorias, planejando usar politicamente as nomeações, o presidente Lula juntou-se aos adversários da autonomia operacional das agências. Pode não ter calculado essa conseqüência, mas, na prática, é esse o efeito de sua decisão.
Esse efeito tem desdobramentos perigosos. O senador José Jorge (PFL-PE) apresentou projeto de emenda constitucional para transferir ao Senado a competência para indicar e nomear diretores das agências, quando os cargos permanecerem vagos durante 90 dias por omissão do presidente da República. O projeto foi aprovado na quarta-feira pela Comissão de Constituição e Justiça. A presidência da Agência Nacional de Energia Elétrica está vaga desde maio, lembrou o senador, justificando sua iniciativa.
A idéia de lotear diretorias de agências reguladoras pode ultrapassar amplamente, portanto, o custo imaginado pelo presidente Lula. Pode custar-lhe parte do poder de nomeação, tornando o processo ainda mais inseguro e sujeito a barganhas políticas de todo tipo.