Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 20, 2005

A dura lição trazida pela febre aftosa

OESP
A dura lição trazida pela febre aftosa

José Roberto Mendonça de Barros e José Carlos Hausknecht

A febre aftosa é uma doença altamente contagiosa. Apesar de não causar problemas aos seres humanos, os efeitos da doença causam grandes prejuízos econômicos, em conseqüência da à queda de produtividade e aos gastos com o tratamento dos animais afetados. Trata-se de uma doença que já foi erradicada em diversas regiões do mundo e, como conseqüência, muitos países impõem severas restrições à importação de produtos originários de regiões ainda sujeitas à ocorrência do vírus.

Nos produtos provenientes de animais infectados, o vírus se aloja normalmente nos ossos; em conseqüência, o risco de contaminação nos produtos desossados é muito pequeno. Além disso, o tratamento térmico da carne inativa o vírus, o que torna a carne industrializada livre de contaminação, razão pela qual o embargo não atingiu os produtos cozidos e/ou enlatados.

A Organização Internacional de Epizootias (OIE), órgão internacional responsável pelo estabelecimento e fiscalização de padrões sanitários mundiais, permite que países como o Brasil, onde existem regiões livres de aftosa, façam uma regionalização de sua produção, isolando as áreas livres e, com isso, podendo exportar seus produtos como se fossem países independentes. Atualmente, cerca de 85% do rebanho brasileiro já se encontra nas regiões livres de aftosa. Entretanto alguns países, dentre eles grandes importadores mundiais, como EUA, México, Canadá, Japão e Coréia do Sul, não aceitam essa regionalização e impedem a entrada de carne proveniente de nações não inteiramente livres da doença. Esses grandes países consumidores representam cerca de 37% do volume de carne importada no mundo; além disso, são nações que compram cortes de carne de alto valor. Com a queda das exportações norte-americanas (por conta da vaca louca), a Austrália passou a atender especialmente esses mercados de alto valor, abrindo espaço para o Brasil vender carne para outras regiões, como Chile, Egito, Rússia e Oriente Médio, que, apesar de serem grandes importadores, são mercados de produtos de baixo valor. A União Européia é o único mercado de carne diferenciada acessível aos produtos brasileiros.

Com esse cenário em mente, podemos ter idéia da perda potencial que representa a febre aftosa para as exportações brasileiras de carne bovina: a simples erradicação da doença em todo o território brasileiro abriria um enorme mercado potencial para os produtores nacionais. O principal custo do atual surto de febre aftosa, portanto, é tornar mais distante este grande avanço para a cadeia produtiva como um todo.

O governo brasileiro já vinha sendo alertado por diversas lideranças, técnicos e consultores do risco sanitário que estávamos correndo por causa da diminuição de verbas destinadas a fiscalização. As regiões de fronteira com países como Bolívia e Paraguai sempre foram consideradas áreas de maior risco em virtude das condições sanitárias. Por esse motivo, deveria ter sido montado um monitoramento mais rígido a fim de impedir o trânsito ilegal de animais. Lamentavelmente, o que se verificou foi um total descaso das autoridades federais e estaduais – mesmo após a ocorrência dos focos, a região da fronteira continuava praticamente sem fiscalização, permitindo o livre trânsito dos animais.

Descaso semelhante se observou quanto à fiscalização interna. O pecuarista profissional em geral vacina o seu gado - a vacinação nos Estados livres da doença cobre praticamente 100% do rebanho. No entanto alguns poucos produtores, normalmente em pequenas propriedades, acabam abrindo mão de uma vacinação correta, seja por economia de dinheiro, seja por falta de locais adequados ao manejo dos animais, seja pelo desconhecimento técnico em relação aos cuidados na armazenagem da vacina. O resultado é uma redução na eficiência da imunização. É o típico caso em que uma minoria coloca em risco o trabalho da maioria. Somente a fiscalização sanitária exercida pelo poder público pode contornar esse impasse. É algo parecido com o trânsito: se todos os motoristas seguissem as leis, não haveria necessidade de polícia. Entretanto, como alguns não o fazem e assim colocam em risco a vida de inocentes, o poder de polícia do Estado tem que ser exercitado e para tanto é preciso ter recursos.

As perdas relativas aos embargos da carne brasileira no exterior dependem crucialmente da existência ou não de casos de aftosa no Paraná: se existirem focos será muito difícil reduzir os embargos de forma relativamente rápida; nesse caso, as perdas acontecerão também no próximo ano e serão consideráveis. Alternativamente, e é o que parece hoje mais provável, se os focos no Paraná não forem confirmados, será possível solicitar o levantamento rápido das barreiras a todos os Estados, menos Mato Grosso do Sul. Em particular, se a União Européia permitir a volta das exportações paulistas (que representam 60% das vendas de carne in natura) no início do próximo ano, as perdas serão manejáveis. Mantidas as atuais restrições aos Estados, a perda será de até US$ 70 milhões por mês de embargo. Caso as exportações para a UE provenientes do Estado de São Paulo forem liberadas, o efeito sobre as exportações ficará bem abaixo desse valor.

A lição para todos é simples e dura: o mercado externo exige o atendimento de padrões seguros de sanidade e rastreabilidade. Apenas assim tiraremos o proveito de ter no Brasil o menor custo de carne do mundo.


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