Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, abril 05, 2005

Folha de S.Paulo -José Aristodemo Pinotti: Crise e oportunidade na saúde - 05/04/2005

A intervenção na Saúde no Rio de Janeiro feita pelo governo federal, apesar de justa, não passa de uma boa dose de aspirina para acalmar a febre de uma doença que assola todo o organismo do sistema, cujas raízes não estão somente na precária gestão carioca, que fez com que a crise eclodisse lá em primeiro lugar. Na verdade, estamos tratando a saúde brasileira fingindo modernidade e praticando arcaísmo.

Na verdade, estamos tratando a saúde brasileira fingindo modernidade e praticando arcaísmo


Os recursos são poucos: per capita, são 5% a 10% do que é empregue nos países desenvolvidos, apesar da emenda constitucional 29, de 29/9/00, enorme avanço, pois vinculou e aumentou as verbas de saúde. Entretanto, se dobrarmos esses recursos, eles continuarão insuficientes. Por isso mesmo não podemos imitar os países ricos, importando modelos, priorizando e pagando mais por procedimentos de alta complexidade, muitas vezes inutilmente.
Gasta-se quatro vezes mais para ligar trompas por laparoscopia do que por via vaginal (muito mais simples) -mas prefere-se a primeira porque é "moda", claramente incentivada pelos vendedores de equipamentos. A cirurgia de obesidade feita pelos métodos tradicionais tem os mesmos resultados das feitas por vídeo, que custam três vezes mais. Os preços dos medicamentos estouraram depois de aprovada a Lei de Patentes, e não há coragem para continuar a romper as patentes, como ocorreu na gestão do ministro José Serra, e diminuir os custos altíssimos dos remédios, que oferecem lucros obscenos aos fabricantes.
Os custos de saúde, em 2004, aumentaram 10% acima da inflação nos EUA e 22% no Brasil, onde privilegiamos o tratamento hospitalar em detrimento da atenção primária; e, na inexistência desta -em que faltam médicos, remédios, bom acolhimento, fácil acesso e organização-, agrava-se a crise hospitalar, pela sobrecarga decorrente.
Enfim, está se destruindo a política de saúde que vinha sendo formulada de 1998 a 2002, que começava a definir prioridades e usar os conhecimentos mais modernos (não confundir com técnicas e equipamentos mais caros) para, com os recursos que temos, darmos um salto de qualidade. É a velha história: os países em desenvolvimento têm a grande oportunidade de subir cinco degraus ao mesmo tempo, evitando erros e caminhos já trilhados no árduo trajeto dos países desbravadores, mas não o fazem, estão submissos aos interesses econômicos impostos e derrapam no vazio cultural que nos obriga a imitar e nos impede de inovar.
Existem três movimentos que, corajosa e convenientemente implantados, trariam a redenção de nossa saúde:
organizar a atenção primária (unidades básicas de saúde) em todo o país, através dos municípios, dando-lhe caráter de atenção integral, usando toda a equipe de saúde treinada, com funções delegadas e sempre supervisionadas pelo médico. Multiplicam-se os atendimentos, melhora-se a qualidade e diminuem os custos. Há exemplos bem-sucedidos no país e no mundo.
Inserir a prevenção primária em toda a sociedade, pois compramos em módicas prestações quase todas as nossas doenças, com hábitos inadequados de vida. Cinqüenta por cento dos anos de vida perdidos pelos brasileiros vêm daí, 20% de problemas genéticos e apenas 30% de questões que podemos resolver com remédios, cirurgias e diagnósticos. Prevenção primária se faz educando para a saúde. Meia dúzia de bons hábitos são suficientes. Mudá-los não é fácil, por isso o processo deve estar nas escolas, na mídia e até nos centros de saúde e hospitais, em uma ação governamental transdisciplinar. Isso custa pouco e o que se economiza é incomensurável em anos de vida e recursos.
Ouso dizer que até diagnóstico precoce é arcaico. Cito o exemplo do câncer do colo do útero: doença sexualmente transmissível causada pelo vírus HP (HPV) quando encontra feridas e infecções. Se ensinarmos as mulheres a praticar o coito protegido, se tratarmos as lesões viróticas, os corrimentos e as feridas na atenção primária, elas não terão essa doença. Há países no mundo que praticamente a aboliram e onde o papanicolau (diagnóstico precoce) já não é prioritário, pois é possível preveni-la. Pois bem, neste país morrem 4.000 mulheres por ano de câncer de colo uterino -depois de um tratamento complexo, muito sofrimento e enormes despesas.
O terceiro movimento é a reformulação e estatização (por mais paradoxal que pareça) do atendimento hospitalar público que está sendo privatizado e daquele dos planos de saúde, que, com a conivência da Agência Nacional de Saúde, atendem muito mais a saúde financeira das operadoras do que a saúde dos usuários. Pobre classe média! A galopante mercantilização da saúde, que deixa de ser um bem público, infiltra as bases conceituais de um regime que se diz republicano.
Para essas mudanças é preciso conhecimento, visão de mundo, alguma criatividade, experiência, forte crença nos princípios democráticos e muita coragem para enfrentar todos os interesses subalternos que mantêm o arcaísmo dos nossos sistemas público e privado de saúde. Uma política nessa direção, implantada pelo Ministério da Saúde, que detém um enorme poder no país, pode lograr a mudança e fazer a diferença. A crise do Rio pode ser um bom estímulo para reflexão e ação do governo federal em nível nacional.

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