A CIELO O QUE É DE CÉSAR
Obtido em Roma, o recorde mundial dos 100 metros, a prova mais nobre
da natação, põe César Cielo nos verbetes de enciclopédias do esporte
e na história dos poucos (pouquíssimos) ídolos mundiais brasileiros
Fábio Altman
Gregorio Borgia/AP |
A CELEBRAÇÃO DO FEITO Ainda marcado pelos tapas no peito, ritual pré-prova que o faz parecer arranhado, o campeão grita de euforia e dor em Roma |
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Numa frase de 37 palavras, dessas que ocupam pouco mais que o espaço aceito por uma mensagem no Twitter, ofegante, quase assustado, César Cielo, o homem mais rápido do mundo dentro d'água, referiu-se quatro vezes ao estrago que o acúmulo de ácido lático em seu sangue lhe causou nos 46s91 do recorde mundial dos 100 metros, em Roma, na quinta-feira da semana passada. "Está doendo muito agora, estou com dores fortes no corpo, mas tinha decidido que ia ser uma prova em que eu sentiria mesmo muita dor, a mais dolorida da minha vida", disse. "Minhas pernas estão muito, muito pesadas."
A dor, nas provas rápidas da natação, é tão lancinante que só tem um remédio: a vitória. Só o primeiro lugar no pódio de um campeonato mundial, com o melhor tempo da história, ou o ouro olímpico, como o dos 50 metros em Pequim, são capazes de aliviar a sensação de queimadura interna provocada pelo acúmulo de ácido lático no sangue quando ele é produzido em esforços musculares sobre-humanos. "Só aguenta a dor quem vence", diz Fernando Scherer, o Xuxa, medalhista de bronze na Olimpíada de Atlanta, em 1996, nos 50 metros, e em 2000, no revezamento 4 x 100. Ao deixar a piscina do Foro Itálico, abraçado pela imponência de um conjunto esportivo construído nos anos 1930 por Benito Mussolini, Cielo ainda exibia manchas vermelhas dos tapas no peito e nas pernas que ele mesmo se aplica antes de cair na água em gesto de autoflagelação que ajuda a empurrar a adrenalina às alturas e mostrar a si mesmo que a dor queima mas não assusta nem paralisa - é uma amiga.
Uma hora antes da quente tarde romana, Cielo entregou-se a uma liturgia estranha que há algum tempo se tornou comum nas salas de aquecimento das competições de nado.
Fotos JF Diorio/AE e Michael Sohn/AP |
DO CLUBE BARBARENSE À ITÁLIA Na infância, com menos de 10 anos, o garoto tímido já tinha a tenacidade que o levaria ao pódio do Foro Itálico (à dir.) |
Durante quarenta minutos, com a ajuda de dois membros da delegação brasileira na Itália, concentrado a ponto de se ouvir sua respiração, Cielo sentou-se numa cadeira. Pôs um saco plástico nos pés e, com o auxílio de luvas cirúrgicas, começou o processo de vestir o maiô de competição feito com material especial e tecnologia da Nasa. De tão ajustado, o maiô é quase aplicado sobre a pele como se fosse um adesivo. De tão fino, exige que o nadador use luvas cirúrgicas, pois um fiapo de unha mais afiado pode rasgá-lo. Passar pelo plástico nos pés, escorregadio, foi fácil. Depois, num movimento lento e minucioso, com dedos a eliminar as saliências, a segunda pele de poliuretano (veja mais sobre esses novos trajes no quadro) foi cobrindo o restante do seu corpo.
Aos 22 anos, 1,95 metro e 88 quilos, o paulista de Santa Bárbara d'Oeste estava pronto para entrar nos verbetes de enciclopédia da prova mais nobre da natação. O último recorde mundial brasileiro numa piscina foi obtido em 1982, com Ricardo Prado, então aos 17 anos, nos 400 metros medley. Antes, a única marca fadada a permanecer nas enciclopédias foi a de Manuel dos Santos, também nos 100 metros, em 1961 (veja o quadro). Cielo, no entanto, é o primeiro brasileiro a ser campeão mundial e olímpico.
Ivo Gonzales/Ag. O Globo |
ESTRAGO NA PRIMEIRA VEZ Em maio, no Rio, durante o Torneio Maria Lenk, ao vestir o X-Glide que acabara de desenvolver, Cielo o rasgou na altura da coxa direita |
Enfim, o Brasil tem um herói. Um herói sem atos secretos, disciplinado, concentrado e calmo, sem namoradas para distraí-lo do rígido plano de treinos. "É um sujeito de rara capacidade de concentração", diz Gustavo Borges, dono de quatro medalhas olímpicas, duas de prata e duas de bronze. Vindo do aplicadíssimo Borges, é mais do que um elogio. É parte da consagração. Gustavo Borges agora é o segundo maior nadador brasileiro de todos os tempos. O primeiro é Cielo. O feito do novo César romano ajudou também a descontaminar as manchetes dos jornais, há tempos dominadas pelos relatos cada vez mais assustadores das pilantragens políticas nacionais. Foi um momento de luz em meio a tanta treva. Lembrou, em seu efeito positivo, a injeção de autoestima dada pela conquista do ouro pela seleção brasileira de vôlei masculino nos Jogos de Barcelona, em 1992, quando Fernando Collor marchava para o impeachment, tendo roubado mais uma esperança de renovação na política brasileira.
A um jornalista italiano que o comparou a Ronaldinho Gaúcho e Kaká, Cielo respondeu, rindo como provocação: "Queria ter pelo menos a metade do dinheiro deles". Depois da Olimpíada de Pequim, comprou briga com os dirigentes da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos ao dizer, muito claramente, que tivera pouquíssima ou nenhuma ajuda da entidade. "De 2006 até antes do Pan do Rio, tudo foi bancado pelo meu pai, puro 'paitrocínio'." Agora há patrocínios, necessários porque já não compete pela Universidade Auburn, nos Estados Unidos, que pagava bolsa de 35 000 dólares anuais ao atleta estudante. As pazes com os cartolas foram feitas.
Alessandra Tarantino/AP |
CENA RARÍSSIMA Derrotado pelo alemão Paul Biedermann nos 200 metros, que bateu seu recorde mundial, Michael Phelps chiou. Fora de forma, reclamou dos maiôs e ameaça sair das piscinas à espera de uma decisão das autoridades |
Simples, filho de uma professora de educação física e de um pediatra, além de avó dona de uma banca de revistas no centro de Santa Bárbara, o novo herói nada tem de falsa modéstia. "Apesar de ser um tempo muito louco, eu sabia que ia fazer", diz. "Foi muita dedicação. Sucesso não tem mágica, não. É trabalhar duro e acreditar no que está fazendo. Eu acho que, nestes dois anos, consegui provar isso para todo mundo." Para Ricardo Prado, a vitória de Cielo pode ajudar a diminuir um problema atavicamente brasileiro. "As pessoas poetizam demais as conquistas nacionais", afirma Prado. "Não tem essa história de coitadinho, é do Brasil, não tem recurso. Ele é talentoso e treinou para chegar aonde chegou. É muito prático. Não tem poesia, é simples. Os brasileiros não são piores que ninguém. Temos de lutar como iguais. Precisamos parar de pensar que os sonhos são impossíveis."
Michael Sohn/AP |
CENA COMUNÍSSIMA A italiana Federica Pellegrini, dona de dois ouros e três recordes mundiais, musa das piscinas, impedia o silêncio até nos tiros de largada no Foro Itálico |
Sem poesia, Cielo (ou Cesão, apelido familiar) cresceu e apareceu num momento difícil para a natação - difícil e fascinante ao mesmo tempo. Há muita controvérsia, como nunca houve em nenhum outro esporte, em torno dos maiôs, aqueles que levam até quarenta minutos para entrar no corpo, comprovadamente úteis na melhora dos tempos, "doping de armário", como são conhecidos entre os nadadores. Cielo, em Roma, vestiu um X-Glide da Arena(veja o quadro) que ele mesmo ajudou a desenvolver, e que o faz parecer o Batman, como comparou certa vez Flávia, a mãe do campeão.
De sunga de algodão, como Johnny Weissmuller, ou bigodudo e peludo como Mark Spitz, Cielo certamente seria um gigante de mesmo quilate. A tecnologia não o diminui - assim como seu desempenho nada subtrai da tecnologia, vital em tudo, hoje. Mas já não há dúvida de que as peças modernas fazem diferença. "Um nadador cansado tende a afundar", diz Scherer. "Com essa família de maiôs, o corpo flutua, e perdem-se menos tempo e energia na piscina." Para Scherer, nivela-se a turma de baixo, de piores marcas, "mas entre os primeiros há pouca influência".
Não é o que acha, hoje, o maior vencedor de todos os tempos, o americano Michael Phelps, oito medalhas de ouro em Pequim, catorze somando-se as vitórias de Atenas. Pode soar mentiroso, mas Phelps perdeu em Roma na semana passada - perdeu e pôs a culpa na roupa. Phelps tinha o recorde mundial dos 200 metros, com o tempo de 1min42s96. O alemão Paul Biedermann, com 1m42s, o superou. O americano ostentava um maiô do ano passado. Biedermann, um X-Glide da Arena como o de Cielo. Menos de um ano os separa, e a vestimenta de Phelps parece uma armadura medieval quando confrontada com a do vencedor em Roma. Nos 100 metros de Cielo, o tempo do 16º colocado, impulsionado pela vestimenta, o levaria ao ouro no Mundial de 2007. Em apenas dois anos, foram batidos mais de 100 recordes mundiais - o triplo do habi-tual, quando a Lycra era regra.
Irritado com avanços tão espetaculares, especialmente o de Biedermann, que melhorou quatro segundos em apenas um ano, o treinador de Phelps, Bob Bowman, ironizou. "Michael demorou de 2003 a 2008 para baixar de 1min46 para 1min42s96, e esse cara consegue em onze meses? É um programa de treinamento fantástico, gostaria de saber qual." Phelps, incomodado no segundo lugar do pódio, que nunca lhe cabe, tentou diminuir a marola. "Perdi para um nadador." Foi modesto porque sabe ter usado maiôs de última geração, e por meio deles aumentou ainda mais a distância que o separa do comum dos mortais. Mas logo Phelps também mergulhou na polêmica. "A gente não fala mais de nadadores, mas de roupas de competição", diz. Scherer resume a atual temporada nas raias: "Agora, quando tratarmos de natação, teremos a era pré-maiô e a era pós-maiô".
O "pós-maiô", a rigor, deve vir mesmo no ano que vem. Em Roma, na semana passada, a Federação Internacional de Natação (Fina) anunciou a formação de um grupo de especialistas, chefiados por Jan-Anders Mason, do Instituto Federal Suíço de Tecnologia, para definir o que poderá ou não ser usado. No centro da decisão, os cientistas tentam estabelecer o que é têxtil ou não, o que é pano ou não. A Fina defende a utilização de "material composto de fios naturais e/ou sintéticos, individuais e não consolidados", o que excluiria as roupas de poliuretano. Os homens só poderão nadar com bermuda abaixo do umbigo e as mulheres com collant que não pode cobrir o pescoço nem passar dos ombros. O material não poderá revestir o corpo abaixo dos joelhos nem ter zíper. O limite de flutuabilidade também será reduzido para 0,5 newton, metade do patamar atual, podendo cair a zero. Newton é a unidade de força necessária para acelerar uma massa de 1 quilo a um ritmo de 1 metro por segundo ao quadrado.
Em outras palavras: nada que ajude a boiar será autorizado. "Com as novas regras da Fina será quase impossível desenvolver trajes com tecnologia capaz de ajudar a produzir novos recordes", diz Renato Hacker, diretor da Speedo no Brasil. Os maiôs espaciais, desenvolvidos com o apoio da Nasa e de empresas de navegação, custam de 1 500 a 1 800 reais e são usados de duas a cinco vezes, no máximo.
Fotos Pedro Martinelli e Egberto Nogueira |
OS PIONEIROS DO BRASIL Ricardo Prado (à dir.) bateu o recorde mundial dos 400 medley em 1982, aos 17 anos; Gustavo Borges e Fernando Scherer têm, somados, seis medalhas olímpicas |
Há uma encrenca à vista. Quando os maiôs forem proibidos, se forem proibidos, o que fazer com os recordes mundiais? Cancelá-los, o que significaria tirar a marca de Cielo? A Fina, em maio, reprovou 146 de 348 modelos testados - inclusive uma versão anterior do X-Glide, agora modificado para obedecer ao controle oficial. Estudiosos acreditam que, caso os maiôs sejam mesmo vetados, os recordes voltarão a cair no ritmo de antes, de quatro em quatro anos, nos ciclos de treinamento olímpico. Na década de 1980, quando foi mudado o centro de gravidade dos dardos, todos os recordes de lançamento de dardo no atletismo foram anulados, e partiu-se do zero. É medida que mataria a natação, esporte que depende de comparações para criar mitos. "Todas as modalidades impuseram limites à ciência e, no entanto, fabricantes e atletas nunca pararam de buscar avanços", diz Darren Stefanyshyn, do Laboratório de Performance Humana da Universidade de Calgary. "Remover toda a tecnologia não é solução."
Phelps já foi chamado, inúmeras vezes, de "o Michael Schumacher da natação". Mas seu esporte nunca quis ser como a Fórmula 1, na qual os competidores pulam de patrocinador para patrocinador, de escuderia para escuderia, em busca do melhor equipamento dentro dos limites estabelecidos. Até muito recentemente, todos os maiôs eram feitos, na maioria dos casos, do mesmo modo. O sucesso nas piscinas era dado apenas por treinamento, talento e tenacidade (leia-se Cielo). No ano passado, com a introdução dos modelos de poliuretano, deu-se o início de uma estranha revolução. "É o caos", diz Mark Schubert, diretor da Federação Americana de Natação. "Vi nadadores correndo atrás de vendedores de maiôs em Roma entre uma prova e outra, como se estivessem numa feira." Deu-se o ápice do desespero quando dois atletas, nas preliminares dos 100 metros de Cielo, foram desclassificados por ter usado um segundo maiô, um sobre o outro, tentando ampliar a flutuabilidade. Ficou ridículo, e pior ainda ao serem flagrados na contrafação. Vestir um segundo modelo talvez impedisse a nadadora italiana Flavia Zoccari de mostrar o bumbum, nos Jogos do Mediterrâneo, em julho, quando seu Jaked J01 se rasgou inapelavelmente. Constrangida, chorando, ela abandonou a prova. Cielo, na primeira vez que vestiu o X-Glide, em maio passado, no Troféu Maria Lenk, no Rio, atrapalhou-se e também estragou o uniforme, na altura da coxa. Tudo por centésimos de segundo a menos. No caso de Cielo, convém lembrar, mesmo pelado será sempre um herói. Um herói brasileiro, enfim.
Em Roma, ele só perdeu em popularidade para a bela italiana Federica Pellegrini, que, antes de conquistar as medalhas de ouro nos 200 e 400 metros, posou nua para uma revista. Gritos da torcida no Foro Itálico interrompiam o silêncio que antecede o tiro de largada quando, em movimento ritualístico, ela dava um soco com o punho fechado no lado esquerdo do peito, bem na altura do coração. Depois, punha o dedo no meio da testa, como se estivesse fazendo uma mentalização. Ela e Cielo são os césares de Roma. Ou, como publicou em manchete a Gazzetta dello Sport, "Santo Cielo". Cielo, em italiano, é céu.
Com reportagem de Paula Neiva