O País renovará, em outubro, a base do seu edifício político, ao eleger 51 mil vereadores e 5.665 prefeitos dentre um total de cerca de 400 mil candidatos. A renovação (?) se dará sobre uma argamassa cultural-educativa com a seguinte composição: 24% dos pleiteantes não têm o ensino fundamental completo, 27,4% contam com o ensino médio, 15,8% apresentam diploma superior e 4,9% sabem apenas ler e escrever. No país urbano, como é o Brasil, os agricultores compõem a maioria dos candidatos, seguidos de comerciantes e servidores públicos. Não é preciso muito esforço para constatar, a partir dessa planilha, que a renovação política pela base é uma quimera. A estatística é o espelho da velha política. As vigas do sistema começam a entortar na base da representação popular, onde estão as Casas de vereadores, que funcionam como câmaras de eco do Executivo municipal. Eis a fotografia: aprovam projetos com a bênção do prefeito; um sistema de compadrio se estabelece entre vereadores para ratificação de iniciativas de partidos; são complacentes na fiscalização da prefeitura; proposições técnicas têm menos peso que decisões de cunho político; e, por último, a população exerce pouca influência na agenda parlamentar. As Assembléias estaduais copiam o figurino municipal. No plano nacional, as pautas da Câmara e do Senado são controladas pelo Executivo. O trabalho mais fecundo, realizado por comissões técnicas, acaba se perdendo no emaranhado de papéis. Nem 5% dos projetos apresentados são transformados em leis.
O que sobra de tudo isso? Um parlamentarismo enviesado, sistema de governo que o Brasil oferece às democracias contemporâneas e pelo qual o Poder Executivo desenvolve ações decorrentes de leis e medidas de sua própria autoria. O sistema de representação chegou, no Brasil, ao fundo do poço. Não se trata apenas de constatar que a produção legislativa do Executivo é bem maior que a do Legislativo, como se pode ver no índice de 2007, quando a primeira chegou a 76,59% e a segunda foi de apenas 21,99%. O Legislativo é cada vez mais um poder invertebrado, manobrado, predisposto a convalidar posições dos outros dois Poderes. É vergonhoso assistir ao espetáculo a que a representação política é submetida quando, por omissão, permite que o Judiciário legisle, como no caso de candidatos de "fichas sujas", ou que o Executivo assuma o controle de matérias da pauta legislativa, como reforma política, projeto patrocinado pelo Palácio do Planalto. O corpo congressual perdeu o controle de suas funções. É o que se ouve por todos os lados.
O presidencialismo de cunho imperial e o Judiciário de gosto legislativo não são obra do acaso. Adquirem essa conformação porque os parlamentares se têm omitido, fato reconhecido pelo próprio presidente do Congresso, senador Garibaldi Alves, com a verve de quem não quer tampar o sol com a peneira: "Os inimigos dos políticos são, em primeiro lugar, os próprios políticos, que se omitem, pisam na bola, fazem gol contra." São eles mesmos que, ao não cumprirem todas as suas funções, contribuem para romper o mecanismo de freios e contrapesos na divisão dos Poderes. É até compreensível o descaso. Em nossa cultura política viceja o clientelismo do Estado. A Carta de 88, por seu lado, deixou vazios, situações que estão a exigir norma infraconstitucional, como é o caso do conceito de "vida pregressa" de candidatos, ali citado. Se não há regra explícita, o Judiciário põe a mão na massa, interpreta a lei e entra no terreno legislativo.
A constatação de que a representação política se apequena a olhos vistos é mais surpreendente quando se atenta para a equação tripartite do barão de Montesquieu. Resgatemos sua argumentação. O Poder Legislativo é formado por representantes do povo soberano; por conseguinte, a lei constitui um produto direto da democracia representativa. E os juízes? Ora, nada mais são, segundo o autor de O Espírito das Leis, "senão a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar-lhe a força nem o vigor". Resulta como paradigma liberal do Estado de Direito a submissão do Judiciário à lei e, nesse caso, sob o abrigo do Parlamento, já que este Poder exprime a vontade geral. Ao longo do tempo, as funções típicas dos Poderes foram se distinguindo de funções atípicas, passando a dominar, cada um, escopos delimitados nos campos legislativo, administrativo e judiciário. Nem por isso a invasão do espaço de um Poder por outro deixa de ocorrer. Quando há espaços não preenchidos por falta de legislação, a invasão ocorre. A justificativa é que a intromissão se faz por necessidade de se preservar a vida institucional.
E é nesse ponto que o Poder Legislativo amortece sua força. Acanhado, parecendo submisso, permite que outros Poderes avancem sobre seu território. Como pano de fundo do definhamento, registra-se uma inversão na cronologia da cidadania: os direitos sociais chegaram para os brasileiros antes que os direitos políticos. E isso contribuiu para a formação de um Executivo forte. Desde Getúlio, na década de 30, o povo sente-se mais atraído por um Estado de longos braços protetores - sob um regime presidencialista e centralizador - do que por uma representação anódina, de baixo conceito e pouca confiabilidade. Hoje, apenas 3% dos brasileiros acham que os parlamentares merecem confiança. Esta imagem desgastada do Parlamento é velha. Na tribuna, Ruy Barbosa, em junho de 1899, descrevia "um Congresso de mendicantes, janízaros do chefe do Est ado e de agentes de negócios dos governadores. Em suma, a decomposição parlamentar na sua ex trema fase".
E onde está a saída para um Parlamento encurralado? Disposição para mudar de atitude e dar um basta. Um basta ao poder avassalador dos Executivos em todas as instâncias. Preencher os vazios abertos pela Constituição. Cumprir sem transigir as funções legislativas. Fazer a reforma política. E entender que não se faz reforma sem cortar a própria carne. A questão é: há disposição para tanto?
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
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