Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 17, 2008

60 anos do Gatt e da Declaração Universal Celso Lafer

No dia 1º de janeiro de 1948 entrou em vigor o Gatt, que deu origem ao sistema multilateral de comércio baseado na reciprocidade e na não-discriminação, hoje institucionalizado com vocação universal na Organização Mundial do Comércio (OMC). No dia 10 de dezembro de 1948 a Assembléia-Geral da ONU adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que introduziu na agenda internacional, com inédita abrangência, o papel, em escala planetária, dos direitos humanos na convivência coletiva. Esses dois eventos, que ocorreram há 60 anos, são, em função da relevância de seus desdobramentos, ingredientes importantes na configuração da ordem mundial contemporânea. Cabe, por isso mesmo, parar para pensar o significado desses dois marcos da vida do sistema internacional, de cuja origem e posterior desenvolvimento o Brasil participou, atuando com a qualidade da sua diplomacia.

O Gatt e a Declaração Universal têm em comum a preocupação com a construção de uma ordem mundial mais pacífica no pós-2ª Guerra Mundial. A Declaração identifica, no respeito pelos direitos humanos, no plano interno, um ingrediente sustentador de uma visão do mundo propiciadora da conduta pacífica no plano internacional. O Gatt tem como idéia inspiradora o papel construtivo do comércio como amainador do impacto dos preconceitos e promotor de uma interdependência positiva das nações.

A violência e a destrutividade da 2ª Guerra Mundial, a descartabilidade do ser humano levada a cabo pelo nazismo e o xenófobo isolamento autárquico da década de 1930 foram fontes materiais de uma visão das coisas voltada para construir uma ordem mundial empenhada na sustentabilidade da paz, de que tanto o Gatt quanto a Declaração Universal são tributários.

Cordell Hull, secretário de Estado do presidente Roosevelt, afirmava que a paz durável e o bem-estar das nações estavam indissoluvelmente ligados ao máximo grau praticável da liberdade de um comércio internacional conduzido com amizade, fairness e igualdade. Lidava, deste modo, com as tensões provenientes da exacerbação dos unilateralismos protecionistas dos anos 30, que a crise econômica de 1929 favoreceu.

A Carta da ONU, em cujo âmbito se insere a Declaração Universal, tem como uma das suas fontes inspiradoras, no campo dos direitos humanos, a importância, afirmada por Roosevelt, para um mundo futuro, livre da discricionariedade e da guerra, de quatro liberdades: a da palavra e de expressão, a da religião, a da vida ao abrigo da necessidade e a de viver sem medo. René Cassin, um dos redatores da Declaração Universal, trabalhou com a convicção de que seria impossível uma paz internacional efetiva num mundo no qual os direitos humanos fossem muito desigualmente respeitados.

A Declaração Universal traçou uma política do Direito que trouxe o desenvolvimento de um Direito Internacional dos Direitos Humanos que se corporificou em tratados de proteção geral (como os Pactos de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos e Sociais) e de proteção particularizada (como a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial). Esta política de Direito vem levando à promoção do valor dos direitos humanos e também ao seu controle, pois a maioria dos tratados prevê o monitoramento dos compromissos assumidos. A grande conferência da ONU de Viena de 1993 sobre os Direitos Humanos, lastreada em abrangente representatividade, afirmou a universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relacionamento de todos os direitos humanos, confirmando diplomaticamente a formulação de Bobbio sobre o relacionamento entre direitos humanos e democracia no plano interno e possibilidades de paz no plano internacional.

O Gatt, em sucessivas rodadas de negociações, foi reduzindo tarifas e outras barreiras ao comércio internacional, ampliando o número de suas partes contratantes, e a conclusão da Rodada Uruguai levou à criação, em 1994, da OMC. Esta se caracteriza pela abrangência de seus integrantes, pelo objetivo de fazer do comércio internacional um instrumento de desenvolvimento dos países e pela consolidação institucional de um sistema multilateral de comércio regido por normas promotoras de segurança das expectativas de seus membros. Neste contexto vem desempenhando grande papel num eficaz sistema de solução de controvérsias - que o Brasil tem utilizado com sucesso - que é a expressão de um inovador papel do Direito na vida internacional.

No correr destes 60 anos o sistema multilateral de comércio, inaugurado pelo Gatt, a Declaração Universal e a política de direitos humanos que vem promovendo tiveram impacto significativo na dinâmica do funcionamento da ordem mundial. São história viva e como tal enfrentam desafios na continuada afirmação da obra a realizar dos valores que estão na sua origem.

Os Direitos Humanos expressam a ambição normativa da agenda internacional. Esta ambição enfrenta as seletividades do realismo do poder e a heterogeneidade de valores existentes no sistema internacional que, em conjunto, obstaculizam a plena e compartilhada afirmação de uma razão abrangente da humanidade. A OMC, por sua vez, enfrenta o desafio da gestão de uma economia globalizada num mundo caracterizado pela desigualdade e pela diversidade das condições de competitividade. Isto se traduz, por exemplo, na persistência de tendências protecionistas, sobretudo na área agrícola, que impediram, no mês passado, a conclusão da Rodada Doha. O desdobramento destas duas experiências comprova como é uma esquiva conquista da razão política no plano internacional captar interesses comuns e compartilháveis, mediar conflitos de valores e a diversidade cultural e gerir as desigualdades do poder.

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