No Rio de Janeiro, traficantes têm seus próprios
candidatos a vereador. Para elegê-los, constrangem
os concorrentes e coagem moradores das favelas
Ronaldo França
Oscar Cabral |
Rafael Andrade/Folha Imagem | ||
O CANDIDATO Claudinho da Academia, acima, é o escolhido pelo bandido Nem para representar os interesses da favela da Rocinha, onde outros são impedidos de entrar: versão criminosa do velho vício da política | ||
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O Brasil acordou, na semana passada, para o agravamento de um problema que parecia ter chegado a seu limite extremo: o domínio de vastas áreas da cidade do Rio de Janeiro por grupos armados. Já era conhecido o seu poder de mando, com força até para fechar o comércio. O que se descobriu agora é que os bandidos expandiram sua atuação. Além de impor uma lei própria, ordenando execuções e toques de recolher, passaram a tentar influir diretamente no processo eleitoral. Há evidências colhidas nos últimos dias:
• A polícia descobriu que o traficante que comanda a venda de drogas na Rocinha tem seu próprio candidato a vereador nestas eleições. E está coagindo os moradores a fazer sua campanha. Uma candidata a vereadora pelo PT foi ameaçada quando se preparava para fazer corpo a corpo no local. Não era bem-vinda.
• No Complexo do Alemão, favela localizada na Zona Norte da cidade e conhecida pela violência da quadrilha que domina a área, os traficantes também têm sua preferência eleitoral. Insatisfeitos com a presença do candidato a prefeito Marcelo Crivella, do PRB, obrigaram jornalistas a apagar as fotografias de suas máquinas digitais.
• Os milicianos (grupos armados chefiados por policiais, bombeiros e agentes penitenciários que dominam favelas na Zona Oeste da cidade) têm seis candidatos e, da mesma forma que os traficantes, impedem a entrada dos concorrentes em seus territórios. Eles também estão convencendo moradores de que há formas de quebrar o sigilo do voto para conferir se suas ordens foram cumpridas.
Fotos Ana Araujo e Celso Junior/AE |
FALTA APONTAR A SOLUÇÃO O presidente do TSE, Carlos Ayres Britto, à esquerda, e o governador do Rio, Sérgio Cabral: promessas de ações emergenciais, como o uso da Força Nacional, não resolvem |
Não é de hoje que a bandidagem exerce alguma influência nas eleições cariocas. Há mais de uma década o tráfico já impõe regras mais ou menos explícitas para o acesso de candidatos às favelas – assim como para permitir a circulação de funcionários das concessionárias de serviços públicos e até de ambulâncias. O que está acontecendo nesta eleição é pior. A polícia encontrou na casa do dono das bocas-de-fumo da Rocinha, o traficante Antônio Bonfim Lopes, mais conhecido como Nem, um documento revelador. Trata-se de um decreto do bandido determinando, entre outras coisas, que todos os moradores sejam obrigados a trabalhar pelo "candidato da comunidade". A polícia já sabe que Nem se referia a Claudinho da Academia, do PSDC, cuja folha corrida registra 22 anotações criminais. Seu advogado alega tratar-se de um homônimo. Seja como for, o caso revela uma tentativa dos traficantes de fazer seus próprios representantes no Legislativo da cidade, numa versão criminosa de antigos vícios de nossa política, como os velhos currais eleitorais que dominaram a história brasileira durante o período da República Velha ou o coronelismo do Nordeste. Circula pelo Rio de Janeiro uma escuta telefônica feita em 2006, com todo jeito de ilegal. Nela, Nem se queixa dos moradores da favela. Argumenta que eles levam os candidatos até lá em troca de dinheiro, o que lhes tira a capacidade de cobrar as promessas. Arvorando-se em defensor da comunidade, o bandido resolveu organizar seu pedaço. É triste.
Diante de tanta desordem, a pergunta é: por que o Rio se tornou uma cidade-refém? Costuma-se afirmar que o problema é a inação do estado. É um diagnóstico torto. O estado está presente, mas de forma errada, precária e, por vezes, criminosa. A tirania dos traficantes é patrocinada por policiais, que lhes vendem proteção e armamento – quando não são eles mesmos os líderes das gangues, as tais milícias que já dominam 171 regiões da cidade. A própria existência das favelas (uma deformação urbanística que se constitui em trincheiras de guerrilha) tem o velado apoio oficial. No alto da Rocinha, em áreas onde não deveria haver barracos, há ligações de água, eletricidade e telefone feitas pelo poder público ou por seus concessionários. Não raro, essas ligações são o atendimento das promessas que os candidatos dos governantes de plantão fazem durante a campanha. Sufocadas pela carência absoluta, as favelas se tornaram um tesouro para os políticos. A felicidade com que eles rumam para as áreas mais carentes da cidade foi interrompida na semana passada pela entrada em cena de um novo ator: o bandido com pretensões eleitorais.
As autoridades, então, se mexeram. O deputado Raul Jungmann, do PPS, presidente da Comissão de Segurança da Câmara dos Deputados, sugeriu que o governo federal enviasse ao Rio a Força Nacional. O governador Sérgio Cabral aceitou a idéia de imediato. Afinal, ele sempre aproveita essas oportunidades para reforçar sua proximidade com o presidente Lula, fato de grande apelo junto aos eleitores. Mas o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Carlos Ayres Britto, não vê a necessidade e determinou que o problema seja resolvido até o próximo dia 11 de agosto. Realmente não é o caso de acionar as tropas federais. O problema não é eleitoral. É de segurança pública. Não adianta reclamar do traficante que não permite a entrada de candidatos. O fato grave é existirem áreas da cidade nas quais quem manda são os bandidos.
A república de Nem
Reprodução |
A cidade do Rio de Janeiro tem 4,5 milhões de eleitores, dos quais 500 000 vivem em áreas conflagradas, como a favela da Rocinha, dominada pelo traficante Antônio Bonfim Lopes, conhecido como Nem. Ali existem
22 000 habitações
67 000 moradores
90 seções eleitorais
45 000* eleitores
*Estimativa com base nos números do Instituto Pereira Passos
Fontes: TSE/TRE/IPP
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