Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 10, 2008

O dinheiro do prêmio JOÃO UBALDO RIBEIRO

Não é para me promover, não só porque não faço isso, como porque a notícia já é velha e saiu em tudo quanto é canto. É porque preciso lembrar que ganhei o prêmio Camões para o que vou contar possa ser bem compreendido.

Tudo bem, ganhei o prêmio, soube atrasado e me entrevistaram logo em seguida. Eu ainda não tinha nem processado a informação direito, embora isto não seja desculpa, até porque não agi de forma a ter de pedir desculpas por nada. Me perguntaram de chofre por que eu achava que tinha sido contemplado e respondi que era porque merecia.

Recebi e ainda estou recebendo várias censuras por ter dado essa resposta.

Quer dizer, o sujeito é obrigado ou a ser hipócrita, a ser falsamente modesto ou a ser criticado por ser imodesto. Vejam que atraso de mentalidade, ou então má vontade, ou falta do que fazer mesmo. Todo mundo que, todo dia, em alguma parte do mundo, aceita e recebe um prêmio seria desonesto, se não achasse que o merecia. Se a pessoa acha sinceramente que não merece um prêmio, então é desonesta ao aceitá-lo.

Não mereço, mas, já que me dão, eu meto a mão, seria este o raciocínio.

Portanto, claro que acho que mereço, embora não seja cabotino o suficiente para dizer por quê, a não ser que me perguntem. E, mesmo aceitando o prêmio e deixando implícito achar que o mereço, a situação ridícula ainda se estende, porque eu devia ter sido “modesto”, ou seja, balbuciado algo sobre minha abissal carência de méritos, de ser “apenas” issozinho ou aquilinho e fazer a mais baixa apreciação possível de minhas duvidosas qualidades. Neste caso, as pessoas me ouviriam e comentariam: “olha aí a falsa modéstia, é óbvio que ele não pensa assim, isso é ele fazendo gênero”. Aí eu não digo nada dessas coisas farisaicas, respondo também que ganhar o prêmio não foi surpresa — e, claro, corri e o bicho não comeu, mas fiquei e o bicho pegou. Imodesto, que coisa feia, que arrogância, que deselegância, devia pelo menos manter as aparências e por aí vai.

Mas isso eu já sabia, como, aliás, numa medida ou outra, todo mundo sabe. Só que a sensação foi mais intensa desta vez. Mas nada que se compare à repercussão do dinheiro do prêmio.

Disseram também que eu menosprezei o prêmio, porque, quando me perguntaram sobre o seu valor, não agi como se tivesse ganho a Microsoft de presente. Cem mil euros! Fiquei com cara de quem receberia cem mil euros mesmo (com quase trinta por cento descontados do Imposto de Renda) e todo mundo se revoltou. Em todas as entrevistas, me perguntavam o que eu ia fazer com o dinheiro, como ia ficar minha vida agora, quais eram meus planos e assim por diante.

Tenho uma geringonça neste computador que faz conversão instantânea de moedas. Nunca a usei antes, mas desta vez recorri a ela e cheguei a achar que estava com defeito, porque demorei a me convencer de que ela me respondia a verdade. Os cem mil euros redondos, sem a mordida do imposto, davam mesmo, nesse dia, 241.910 reais. Não fizeram ainda um roubômetro de confiança para a presente república, mas acho que isso é menos que o total do que aqui roubam por segundo, em falcatruas, maracutaias e malversações diversas. Não sei nem se é quantia suficiente para pagar uma parcela das restituições que o dr. Daniel Dantas disse que recebia da Receita.

Não paga nem um fígado na fila dos hospitais, isso eu sei também.

Mas não cessam de chegar e-mails sobre o dinheiro (não, não saiu ainda; não, não sei quando vai sair; sim, sim, creio que um dia sai.) Quais são seus planos, qual é a destinação (encher bem as bochechas, ao pronunciar a quantia) dos cem mil eeeeeeuros? Acredito que, ainda neste domingo, alguém me perguntará ou entrevistará sobre o assunto, de maneira que preparei a entrevista, acreditando haver coberto todas as dúvidas possíveis.

— Quais são seus planos para o dinheiro do prêmio? — Bem, ainda não está nada definido.

O mundo das altas finanças é bastante mais complexo do que vocês, leigos, imaginam. Estou pensando em contratar os serviços de uma consultora econômica americana, dessas cujos diretores cobram dez mil dólares para levantar o fone do gancho. São caras, mas quem quer o melhor tem de estar preparado para pagar.

— Mas não há um plano já feito assim mais informalmente, pela família mesmo? — Sou obrigado a confessar que sim, a gente meio que — “meio quê”, não é assim que se fala? — a gente meio que endoidou com a notícia do dinheiro.

Por enquanto, o plano que estou mais tentado a seguir é simples. Pensei em comprar a Dinamarca. É meio fria, mas é do tamanhozinho certo, bem arrumadinha, acho que pode sair em conta.

Com outra parte do dinheiro, acho que vou comprar oito coberturas aqui no Leblon, uma para cada um dos meus quatro filhos, uma tríplex para mim e as outras para investir mesmo, ou alojar os amigos que eu convide para uma temporada no Rio. O resto eu invisto em ações de empresas cujo controle eu possa vir a adquirir depois, como a Petrobras ou a Vale. E, para acabar de gastar tudo, passo uns dois anos viajando com minha senhôra e meus pequerruchos pela Europa, sem pressa, curtindo o Tour d’Argent toda noite em Paris, essas bobagens de novo rico mesmo.

— Mas na área social, em projetos de assistência aos excluídos, por exemplo...

— Ah, certamente! Isso não poderia faltar na minha agenda, como fui me esquecer? Na parte dos programas para excluídos, eu mando chamar a senhora sua mãe. Aí eu pego sua mãe, digo a ela que espere um pouco e...

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