Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 17, 2008

Argentina O populismo solapa as potencialidades do país

Piqueteiros chapa-branca

Sem argumentos racionais para defender sua
política econômica suicida, a presidente da
Argentina, Cristina Kirchner, recorre à força


Marcio Aith, de Buenos Aires

Editorial Perfil
Cartaz contra o grupo Clarín em Buenos Aires: liberdade de imprensa sob ataque

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Ao longo de seu mandato, concluído em dezembro passado, o presidente argentino Néstor Kirchner equilibrou-se sobre a esquerda progressista e o populismo autoritário – os dois estereótipos que há quase uma década dominam a política latino-americana. Quando censurava publicamente investidores internacionais, seus assessores creditavam o constrangimento a sua personalidade ranzinza, nunca ao messianismo econômico. O simples fato de não ter dado sequer uma entrevista coletiva em seus quatro anos de governo, explicavam os analistas da alma do presidente, seria fruto de uma introspecção típica dos habitantes de sua terra de origem, a província de Santa Cruz, na Patagônia. Diante desse perfil dúbio, a perspectiva de posse de sua mulher e sucessora, Cristina, parecia um avanço, como mostrou seu discurso conciliador de vitória, em outubro de 2007: "O homem que me acompanha, companheiro de toda a minha vida, assumiu a Presidência em circunstâncias diferentes das atuais. Mas já avançamos muito. Quero agora unir todos os argentinos, sem rancor, sem maldade e sem ódio, pois o ódio só faz mal, só destrói".

Cristina tomou posse em 10 de dezembro. Hoje, apenas cinco meses depois, seu governo está nas cordas, sem rumo e sem saída racional, sendo obrigado a recorrer a um exército de desempregados, subsidiados com dinheiro público, para insuflar o ódio, a maldade e o rancor que ela mesma definiu como forças destruidoras. Nos últimos dois meses, piqueteiros pagos pelo governo têm sido usados para dissolver, aos sopapos, manifestações de produtores rurais queixosos e da classe média urbana alarmada com a inflação. Enquanto isso, jovens peronistas liderados por Máximo Kirchner, o filho mais velho de Cristina e Néstor, espalham cartazes em Buenos Aires contra o maior grupo de comunicação do país, o Clarín, que edita o jornal de mesmo nome e é dono do canal de notícias TN (Todo Noticias). Os cartazes trazem mensagens como "Clarín mente", "Clarín quer inflação" e "TN = tudo negócios". O grupo de Máximo também assina e-mails contendo ameaças contra a diretora do grupo, Ernestina Herrera de Noble, e um de seus proprietários, Héctor Magnetto. Os e-mails trazem fotos do arquivo pessoal de Magnetto que, segundo um editorial publicado pelo jornal, foram obtidas por espionagem. Tradicional aliado do governo, tudo que o jornal Clarín fez para merecer a súbita ira oficial foi jornalismo puro e simples. Para a Casa Rosada isso é ofensa. O governo quer apenas elogios. Ponto.

A guinada autoritária de Cristina está diretamente associada à deterioração das condições econômicas do país. Falta gasolina em alguns postos, há cortes freqüentes de eletricidade e a inflação anual já passa de 25% (o índice oficial, de 9%, só não registra o fenômeno porque está sendo grosseiramente manipulado). A situação, no entanto, tem poucos paralelos com a devastadora crise financeira de 2001, aquela que se seguiu ao maior calote da história mundial. A Argentina agora cresce com vigor há cinco anos ininterruptos, movimento que é puxado pela cotação dos produtos agrícolas. O país tem cerca de 50 bilhões de dólares em reserva. Ocorre, porém, que o modelo de crescimento está claramente esgotado. O consumo da população supera a oferta de bens e serviços, o que deflagrou o processo inflacionário clássico. Em vez de atrair investimentos produtivos ou frear o crescimento do país, as alternativas lógicas para resolver o problema da inflação, Cristina optou por tentar baixar os preços à força. "Isso sem contar o aumento brutal dos gastos, como os subsídios ao transporte público, que aumentaram seis vezes em quatro anos", diz o economista argentino Miguel Angel Broda.

Alejandro Pagni/AFP
O casal Kirchner: economia sem gás faz acender a tentação totalitária

É como se a economia argentina tivesse parado nos anos 80. Cristina envia diariamente seus piqueteiros para fiscalizar os supermercados, ao mesmo tempo que restringe a exportação de grãos e carne. Recentemente, o governo criou um imposto "móvel" sobre a exportação de soja, cuja alíquota aumenta quanto maiores forem os preços internacionais do produto. Em resposta, os agricultores suspenderam as exportações e bloquearam as estradas. "Essa mulher está matando a galinha de ovos de ouro da Argentina, que é a agricultura", diz o pequeno produtor Juan Carlos Mesquida, 62 anos, da cidade de Carlos Casares, a pouco mais de 300 quilômetros de Buenos Aires. O protesto no campo ganhou o apoio da classe média urbana, que promove protestos diários contra o governo nas ruas de Buenos Aires. Um desses protestos, em março passado, foi dissolvido a socos por Luiz D’Elia, líder da Federação Terra e Moradia, entidade de piqueteiros financiada por programas sociais do governo. D’Elia é um admirador do presidente Hugo Chávez, de quem já admitiu ter recebido dinheiro. "Sou admirador da revolução bolivariana. E acho que as elites devem receber umas palmadas de vez em quando", disse ele, na semana passada, entre um piquete e outro. No governo de Néstor Kirchner, D’Elia ocupava um cargo público, na coordenação de programas sociais. Viu-se obrigado a deixar o governo depois de opinar que o serviço secreto de Israel estaria por trás do atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), ocorrido em julho de 1994, no qual 85 pessoas morreram.

Obviamente, essas medidas artificiais estão fracassando na contenção da subida dos preços. Em vez de aumentar a oferta interna, a brutalidade oficial criou mais desabastecimento e trouxe pânico aos consumidores, que têm ainda frescas na memória as lembranças pavorosas das crises recentes da economia argentina. Além de intimidar a imprensa e cercar-se de gente como D’Elia, a presidente Cristina Kirchner também se esforça para obstruir a investigação sobre a já famosa maleta originária da Venezuela contendo 800.000 dólares, que foi apreendida por uma agente da alfândega, em agosto passado, num aeroporto de Buenos Aires. O portador desse dinheiro foi depois detido nos Estados Unidos, assim como agentes venezuelanos enviados àquele país para comprar seu silêncio. Ao FBI, eles confessaram que os recursos eram uma ajuda do presidente venezuelano, Hugo Chávez, para pagar as despesas da campanha de Cristina. Até hoje o governo argentino diz ter se tratado de uma armação golpista contra ela. Também seria golpista, segundo ela, a condenação unânime, da imprensa e dos especialistas, à construção, pela companhia francesa Alston, de um trem-bala que vai unir as cidades de Buenos Aires, Rosário e Córdoba a um custo de 13,5 milhões de reais por assento. Cristina, ideóloga da obra, nega-se a rever seus valores. A revelação feita há quinze dias por investigadores europeus das práticas de corrupção ativa da Alston, na América Latina, não alterou em nada a disposição negocial da senhora Kirchner.

Na quinta-feira passada, a Sociedade Interamericana de Imprensa pediu ao governo argentino que baixe seu nível de confrontação com a imprensa e considerou que o estilo Cristina de governar incentiva atos de vandalismo e restringe a liberdade de expressão. A entidade mencionou como especialmente preocupante a criação de um "observatório" dos meios de comunicação, ligado ao governo e a professores universitários simpáticos aos Kirchner. Esse organismo terá a tarefa de "vigiar" o equilíbrio editorial dos meios de comunicação. A iniciativa se espelha em um instrumento criado por Hugo Chávez para calar seus críticos e sufocar a imprensa independente naquele país. Como ainda está no início de seu governo, Cristina Kirchner dispõe de tempo para reverter a escalada autoritária, dissolver suas milícias e aceitar críticas como parte da rotina democrática. Mas tempo não parece ser o que falta a Cristina.

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