Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, janeiro 07, 2008

O público e o privado



Artigo - Claudia Costin
O Estado de S. Paulo
7/1/2008

Fernanda Montenegro declarou certa vez, em entrevista, que no Brasil o que é público é percebido como de ninguém e poderia, portanto, ser dilapidado. Comparava-nos com países culturalmente mais avançados onde, segundo afirmava, o público seria o equivalente a algo que pertence à coletividade. Assim, bancos em praças públicas, estátuas que procuram registrar nossa História, escolas ou centros de saúde poderiam sofrer agressões, pois, afinal, não seriam de particulares.
Esta triste noção de coisa pública não se restringe a justificar depredações. Leva a tornar aceitáveis a privatização de equipamentos e serviços públicos. Não me refiro à venda de ativos a empresas privadas, na seqüência de audiências públicas, editais e licitações. Aqui, o que me chama a atenção é a articulação de interesses privados para a utilização, por um grupo específico, de algo que pertence à coletividade.

Este fenômeno se revela sob múltiplas modalidades. Uma bem conhecida é o corporativismo, quando o interesse de um grupo de profissionais ligados a determinada prestação de serviço se sobrepõe ao interesse de cidadãos beneficiários ou é propositadamente com ele confundido. É quando, por exemplo, demandas de professores são apresentadas como condições para a melhoria da aprendizagem das crianças (como o abono de faltas não justificadas por mês), ou de médicos que estabelecem plantões virtuais. O corolário desta prática é a degradação dos salários, num círculo vicioso que leva à desprofissionalização do serviço público.

Mas há outras formas de privatização. Quando um banco público financia iniciativas de empresários que não lhe pagam a dívida (ou aguardam a próxima anistia) ou pressionam para que um representante da região assuma uma diretoria, tem-se claramente a privatização do Estado. O mesmo se pode dizer quando um grupo de artistas se enclausura num equipamento público e o considera como sua propriedade.

No entanto, para que o público se destine ao cidadão, e não a grupos de interesses, é fundamental dotá-lo de condições de continuidade de ação para apoiar a formulação e a gestão de políticas públicas. É fundamental existirem gestores públicos de carreira, selecionados por concurso e remunerados de acordo com padrões próximos aos do mercado, para integrar o quadro dos altos funcionários das secretarias e dos ministérios. No governo federal, tal carreira foi criada em 1987 e aperfeiçoada em 1995, permitindo o recrutamento de profissionais aptos a gerenciar projetos em educação, saúde, infra-estrutura ou meio ambiente. Com uma vantagem: com o título de especialistas em políticas públicas e gestão governamental, sua especialidade consiste na natureza da atividade que desempenham, e não num determinado setor governamental. Assim, podem atuar hoje num órgão e, se amanhã este se mostrar inchado, ser deslocados para outro.

Foi, portanto, com grande alegria que vi que a Assembléia Legislativa paulista aprovou lei que cria uma carreira assemelhada no governo do Estado de São Paulo. Iniciativa do governador José Serra, por proposta de Sidney Beraldo, secretário estadual de Gestão Pública, a lei lança as bases para uma profissionalização do setor público no Estado. Prevê a implantação progressiva desta carreira, multidisciplinar, e o secretário já declarou que, aos moldes do governo federal, serão realizados concursos anuais para permitir um impacto reduzido nas contas públicas e, ao mesmo tempo, a necessária oxigenação da máquina pública. Afinal, toda empresa grande traz, a cada ano, um novo grupo de profissionais, para levar dinamismo e renovação a seus quadros: são os chamados “trainees”.

No setor público, o melhor modelo nesta direção é o do Itamaraty, que, ao longo dos anos, durante graves crises econômicas, conduz, a cada ano, um novo e restrito grupo de diplomatas para integrar seus quadros. Assim, cada geração de diplomatas que se aposenta tem tempo de repassar à nova safra de profissionais conhecimentos acumulados, sem problemas de continuidade e com a possibilidade de receber o choque de novas idéias e propostas. Outras carreiras passaram a seguir o exemplo, a partir de 1995, no governo federal, e devo dizer que o governo Lula vinha mantendo essa saudável prática, e até a ampliara.

Mas o minipacote fiscal divulgado quinta-feira, para fazer face à insuficiência de recursos causada pelo fim da CPMF, incluiu, além do aumento das alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a interrupção de concursos públicos. Uma política mais inteligente seria a redução das vagas e a manutenção da estratégia de profissionalização do servidor público, com pouco impacto fiscal. Afinal, não basta gastar menos, é fundamental melhorar a qualidade do gasto, aperfeiçoando a gestão.

Isso vai se passar com São Paulo. Este Estado sofreu muito, no passado, por gastos públicos exagerados e sem resultados em termos de qualidade e cobertura das políticas públicas. Quando mais se desperdiçaram recursos públicos, menos crianças tínhamos na escola, menos centros de saúde, menos hospitais e uma política de saúde fragmentada. O então governador Mário Covas teve de cortar gastos de forma rápida e dramática, para impedir a débâcle do Estado. Assim, pouco pôde fazer pela profissionalização da máquina pública. Com um atraso importante, inclusive em relação a alguns outros Estados, São Paulo poderá agora contar com um corpo de profissionais mais qualificados para gerenciar políticas públicas, impedir o inchaço da administração e, ao mesmo tempo, garantir que o que é público permaneça de todos.

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