IOF, arbítrio e desenvolvimento
O DEM apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) do respectivo decreto, cujo argumento principal é o do "desvio de finalidade", isto é, o uso de um imposto regulatório para "incrementar substancialmente a arrecadação". A Adin invoca julgados do Supremo que realçam o caráter não arrecadatório do IOF.
O decreto é arbitrário. Fere direitos conquistados nos últimos 800 anos e consagrados em textos constitucionais em todo o mundo, inclusive no Brasil. O fato de o governo FHC ter feito o mesmo não justifica persistir no erro. Por isso, seja qual for a decisão do STF, há que emendar a Constituição para proibir aumento de IOF por decreto.
A neutralização do poder de arbítrio dos governantes, que tem na Revolução Gloriosa inglesa de 1688 seu momento áureo, foi fundamental para o êxito do capitalismo. A Declaração de Direitos assinada por William III transferiu o poder supremo do rei ao parlamento e eliminou o absolutismo. Direitos de propriedade garantidos e respeito aos contratos criaram incentivos ao investimento e à assunção de riscos pelos empreendedores.
Essas idéias se enraizaram no mundo anglo-saxônico, criando a visão de que ele funciona à base "da física de Isaac Newton, da economia política de Adam Smith, das teorias constitucionais de Thomas Jefferson e James Madison e das teorias biológicas de Charles Darwin". É o que assinala Walter Russel Mead em seu mais recente livro (God and Gold - Britain, América, and the making of the modern world). Essa lista poderia incluir o individualismo, o protestantismo e a cultura do trabalho duro.
O sistema capitalista gerou um fenômeno novo: o crescimento econômico continuado e a redução da pobreza nos países detentores de instituições propícias ao seu florescimento. É uma novidade de apenas três séculos, quase nada diante dos 150 mil anos do homo sapiens e dos 10 mil anos do surgimento da agricultura e da domesticação de animais. Antes desse sistema, o mundo levava 500 anos para dobrar o PIB.
Não é sem razão que países ibéricos e América Latina ficaram para trás. Mais de 200 anos após a Revolução Gloriosa, o absolutismo sobrevivia. Portugal e Espanha, potências da época dos descobrimentos, chegaram pobres ao século 20. Diferentemente dos EUA, o Brasil não herdou de sua metrópole crenças e instituições geradoras de riqueza via instituições e mercados. Na época da independência, a corte portuguesa era uma das mais atrasadas da Europa.
O IOF não tem mais justificativa como tributo regulatório. Havia razões para tanto no passado, quando a inflação era combatida com tetos para expansão da base monetária, controle de preços e restrições ao crédito mediante tributação das operações e limites de prazo para o financiamento do consumo. Na área do balanço de pagamentos, as crises tornavam necessários extensos controles cambiais e o IOF para tributar operações de câmbio e inibir saídas de capital para o exterior.
O Brasil tornou-se um país previsível, que dispõe de estabilidade macroeconômica, câmbio flutuante, ampla integração aos mercados financeiros globalizados, superávits estruturais na balança comercial, robustas reservas internacionais e instituições inibidoras do populismo e de riscos de colapso das contas externas. Essa esplêndida realidade não pode mais conviver com mecanismos típicos de outras eras, que além do mais deixam margem para o arbítrio, como se viu mais de uma vez no uso do IOF e do IPI para aumentar a arrecadação.
O Brasil amadureceu. Seus riscos políticos e econômicos são crescentemente semelhantes aos de nações bem sucedidas. Somos um país cada vez mais normal. É hora, pois, de impor limites ao arbítrio e a ações governamentais imprevisíveis. É preciso entender que o arbítrio é incompatível com o desenvolvimento do sistema capitalista e, daí, com a prosperidade econômica e com a redução da pobreza e da desigualdade. Como em 1688, as decisões sobre o IOF e o IPI devem ser transferidas ao Congresso.