Artigo - Luiz Paulo Horta |
O Globo |
6/11/2007 |
"Sombra terrível de Facundo, vou evocar-te, a fim de que, sacudindo o ensangüentado pó que cobre as tuas cinzas, venhas explicar-nos a vida secreta e as convulsões internas que dilaceram as entranhas de um povo nobre ..." Nesse estilo barroco, grandiloqüente, Domingo Faustino Sarmiento escreveu, em 1845, um dos livros capitais da literatura argentina. "Facundo" conta a história de um caudilho que se notabilizou nas décadas seguintes à da independência. Tempo de correrias, de muito sangue, de tiranos como Juan Manuel Rosas. Sarmiento tinha horror a tudo isso. Sua história é a de um menino pobre que, pela dedicação ao estudo, torna-se um grande educador, um político bem-sucedido e, finalmente, o presidente do seu país. Na história da Argentina, ele via um conflito permanente entre a civilização que se instalara em Buenos Aires e a "barbárie" que ele personificou em Facundo - o homem do pampa, do deserto, o índio, para quem a civilização não quer dizer nada e precisa até ser demolida. É o conflito que Euclides da Cunha também descreveu em "Os Sertões" - não por acaso, livro básico da nossa nacionalidade. Mas se corre muito sangue nos sertões euclidianos, e se o Império brasileiro conheceu muitas revoltas, aqui, depois, houve uma época de pacificação sob a égide bonachona do segundo Pedro, enquanto, na Argentina, os conflitos parecem não acabar. Eles conhecem a sua apoteose no séc. XX. É espantoso que os nossos vizinhos do Sul tenham chegado ao nível de civilização que se reflete na estrutura urbana de Buenos Aires apenas para verem esse patrimônio dilapidado na febre populista que é o ciclo peronista em suas diversas manifestações. Perón não foi sanguinário como Facundo, mas se Sarmiento vivesse no séc. XX teria identificado ali o mesmo fenômeno: o de uma revolta surda que vem da "Argentina profunda" contra o país civilizado que tem um ótimo nível de educação e freqüenta a ópera do Teatro Colón. É o espetáculo a que assistimos agora na versão Kirchner - uma curiosa versão bifronte, bissexuada. Exatamente como Facundo, Kirchner é o homem da província que toma Buenos Aires de assalto. Não se pode minimizar o papel que ele teve na recuperação da Argentina, depois da "descida aos infernos" que foi o ano de 2001. Verdade que o trabalho foi iniciado no rápido período Duhalde. Mas o fato é que a Argentina, hoje, não se arrasta mais pelo chão. O preço cobrado por isso é que foi muito alto: um governo que está sendo chamado de hiperpresidencialismo, onde o presidente manipula o Judiciário, virtualmente ignora a imprensa, distorce os índices de inflação, compra briga com a iniciativa privada, tudo no sentido de construir um poder incontrastável - poder que agora está nas mãos da sra. Kirchner. Não é uma ditadura, claro. Mas, naquelas terras férteis que produzem carne, trigo e petróleo, joga-se um jogo que interessa a toda a América Latina. A "Argentina profunda" precisa ter a sua voz. Por isso, Perón encontrou eco quando chamou para a arena política os "descamisados" - a que sua mulher Evita ia dar peculiar atenção. Por isso, no Brasil, a carreira política de Lula toma proporções inéditas. Mas o peronismo levou a Argentina à ruína; desmantelou de maneira inconcebível a riqueza nacional. No fim da história, é sempre o destino dos regimes personalistas. Uma rápida visita à Argentina mostra como o Brasil, comparativamente, evoluiu. O período FHC, aqui, foi importante no sentido de construção institucional. Assumindo o governo, o presidente Lula não precisou (como Kirchner) governar com o olho nas ruas. Pôde até enfrentar o seu próprio partido - o PT - e dar seqüência a uma política econômica impopular que agora mostra os seus bons frutos. A economia brasileira também tem, hoje, uma escala que desaconselha aventuras. A imprensa escreve o que quiser, e instituições como o STF estão em pleno funcionamento. Conquistas que aproximam o Brasil - com todos os seus problemas residuais - de países ditos civilizados. Mas o drama da América Latina ainda está sendo encenado. Há quem fale - por enquanto, sem muita eficácia - na tese do terceiro mandato. Se isso se concretizasse, o Brasil perderia a vantagem política que tem sobre seus vizinhos. A tese de que há um presidente "indispensável" nos devolveria ao status de republiqueta sul-americana. E, nas palavras incandescentes de Sarmiento, a civilização teria perdido para a barbárie. |
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
terça-feira, novembro 06, 2007
A sombra de Facundo
Arquivo do blog
-
▼
2007
(5161)
-
▼
novembro
(510)
- Míriam Leitão - A verdade de L.
- Merval Pereira - Disputa de poder
- Luiz Garcia - No Pará, no Rio
- Eliane Cantanhede - "Chique"
- Dora Kramer - Fora da agenda
- Clóvis Rossi - O câncer e o PT
- Celso Ming - Vento do medo
- Muy amigos...
- A truculência de Chávez
- Caras emoções baratas - Nelson Motta
- Lula não confia nos oprimidos: sobe hoje a favela ...
- Sarkozy: 'Distúrbios não são crise social'
- 30 de novembro
- O ataque fascistóide de Lula ao DEM
- OS PATIFES DAS ZAMÉRICAS
- Alberto Tamer - Brasil, feliz, não vê mais nada
- O pior entre os melhores
- Míriam Leitão - Mundo novo
- Merval Pereira - A reboque
- Eliane Cantanhede - Chávez e as Farc
- Dora Kramer - Tiros no peito
- Clóvis Rossi - Exaltação da mediocridade
- Celso Ming - Força nova
- Contra o interesse nacional
- Clipping 29 de novembro
- Míriam Leitão - Em três dimensões
- Merval Pereira - Continente em transe
- Dora Kramer - Debilidade funcional
- Celso Ming - A salvação vem das Arábias
- Clipping 28 de novembro
- AUGUSTO NUNES -Três retratos 3x4 da geléia tropical
- FHC rebate Lula e diz que ?não pode haver preconce...
- DORA KRAMER Notícias do palácio
- Merval Pereira - O plano B
- Míriam Leitão - Licença para gastar
- Clipping 27 de novembro
- Rubens Barbosa,O DIFICIL CAMINHO DA MODERNIZACÃO
- Clipping 26 de novembro
- Ainda FHC, Lula, os educados e os tontons-macoutes...
- DANUZA LEÃO
- FERREIRA GULLAR Rumo à estação Lulândia
- ELIANE CANTANHÊDE Exceção
- Clovis Rossi-O diploma e o lado
- Miriam Leitão Ampliar o debate
- O GLOBO ENTREVISTA LULA
- O GLOBO ENTREVISTA Luiz Inácio Lula da Silva
- Merval Pereira Submarino nuclear
- João Ubaldo Ribeiro Aqui da minha toca
- DANIEL PIZA
- Estadão entrevista Ronaldo Sardenberg
- Alberto Tamer Dólar e petróleo ameaçam o Brasil
- Mailson da Nóbrega
- Democracia ferida
- Celso Ming O desequilíbrio do ajuste
- DORA KRAMER Sem o cheque, resta o choque
- Vergonha nacional
- Tucanos perdidos na floresta
- Quem ganhou com as privatizações
- Entre aloprados e pajés
- Tratamentos a Lula e Azeredo contrastam
- VEJA Carta ao leitor
- VEJA Entrevista: Saulo Ramos
- MILLÔR
- Stephen Kanitz
- Radar
- André Petry
- Diogo Mainardi
- Roberto Pompeu de Toledo
- O PSDB renova seu discurso de oposição
- Projeto liquida com o cargo de suplentes
- A queda do ministro Mares Guia
- Renan Calheiros: a novela continua
- Adolescente é estuprada em cadeia do Pará
- Fechado o restaurante do denunciante do mensalinho
- França Sarkozy enfrenta sindicatos com o apoio ...
- Desbaratada a quadrilha de Fernandinho Beira-Mar
- Nos EUA, quem bebe e dirige é punido
- O carro islâmico da Malásia
- Grandes lojas aderem ao ritmo fast-fashion
- O celular que funciona como cartão eletrônico
- A escova de dentes que dispensa a pasta
- A Amazon lança aparelho que recebe livro digital
- Encontrada a gruta de Rômulo e Remo
- Thiago Pereira, nosso recordista mundial de natação
- A guerra contra a garrafa plástica de água mineral
- Estudo põe em xeque o programa brasileiro antitabaco
- Agora, a FDA aperta o cerco contra o sal
- Células-tronco são obtidas a partir de células da ...
- O que pensam os militares brasileiros
- Michel Schlesinger: um jovem na Congregação Israelita
- O significado da desvalorização do dólar
- Interferência política e concessão de empréstimos
- As opções de cirurgia para a correção da vista
- Cuidados com os olhos no verão
- Einstein – Sua Vida, Seu Universo, de Walter Isaacson
- A Economia em Machado de Assis
- A Mídia do Golpe e A Mídia do Contragolpe
- Lula reage a FHC — “reservadamente”, é claro...
- Merval Pereira Reforçando a defesa
- Celso Ming Vai mudar a economia?
-
▼
novembro
(510)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA