A ABI comemora 100 anos na batalha
pela liberdade de expressão
Marcelo Bortoloti
Fotos acervo ABI |
JORNALISTAS EM DOIS TEMPOS Em 1911, pose de grandes nomes da imprensa, como Bastos Tigre, Raul Pederneiras e Dunshee de Abranches. Ao lado, em 1968, cena da histórica |
Nenhuma democracia forte se faz sem que haja garantia de liberdade de expressão. No Brasil, esse tem sido um desafio histórico. Qualquer brasileiro com mais de 30 anos já experimentou a sombra de uma ditadura, com liberdades individuais cerceadas e censura aos meios de comunicação. Em 118 anos de República, o país teve 34 presidentes, dos quais apenas 21 foram eleitos de forma democrática. Ao longo dessa trajetória acidentada, a imprensa foi muitas vezes vítima da truculência dos governos, mas conseguiu sempre ser um agente decisivo para a construção da democracia no Brasil. Ainda no Império, no fim do século XIX, a atitude combativa de jornalistas como Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Rui Barbosa foi a alma da abolição da escravatura. Na República, a derrocada da ditadura de Getúlio Vargas teve como um de seus principais marcos uma entrevista do escritor e político José Américo de Almeida publicada no Correio da Manhã, em 1945, que desafiava a censura da época. A campanha Diretas Já, que culminou na abertura política do país, só foi efetiva em razão da ampla cobertura dada pela mídia ao movimento. No governo de Fernando Collor de Mello, foi a imprensa que investigou e denunciou as irregularidades, cuja confirmação resultou na renúncia do presidente para escapar do impeachment. "A imprensa brasileira ainda é pouco estudada pelos historiadores, mas teve papel fundamental em todos os acontecimentos políticos do país", diz Alzira Alves de Abreu, do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica da Fundação Getulio Vargas.
Parte dessa história teve a participação ativa da Associação Brasileira de Imprensa, que comemora 100 anos de fundação em abril de 2008. Primeira entidade da categoria no Brasil, ela foi criada em 1908 como órgão de defesa dos interesses dos jornalistas. Mas rapidamente suas atividades transcenderam o corporativismo. Em 1922, a associação já se manifestava contra a censura no governo Arthur Bernardes, que governou sob estado de sítio e prendeu escritores e jornalistas. Sua história se mistura à da luta pela liberdade de expressão, direito que foi subtraído aos brasileiros por mais de 35 anos no último século. "A censura é muito associada à ditadura militar. Mas ela esteve presente em vários momentos desde o período colonial. A imprensa brasileira foi muito perseguida, com jornais fechados e incendiados, como no nazismo", diz a historiadora Tucci Carneiro, que coordena o Projeto Integrado Arquivo do Estado/USP, um grupo que investiga atos de censura cometidos contra a imprensa.
Orlando Brito |
PELA ÉTICA NA POLÍTICA Em 1992, Barbosa Lima Sobrinho e Marcello Lavenère encaminham à Câmara o pedido de cassação de Collor |
A atuação da ABI contra os ataques à imprensa se deu em duas vertentes principais. A primeira foi um trabalho de bastidores, intercedendo junto às autoridades pela libertação de jornalistas encarcerados. Dessa forma, ajudou a salvar muitas vidas. A segunda foi manifestando-se publicamente contra qualquer ato de censura. Isso aconteceu não só em períodos de privação explícita de liberdade de expressão, mas também em períodos que teoricamente seriam democráticos, como o do governo Lula, que tentou criar um órgão para controlar a atividade jornalística no Brasil. A ABI esteve presente em outros episódios importantes da história nacional. A entidade deu início à campanha "O petróleo é nosso", no fim dos anos 1940, que culminou na criação da Petrobras, em 1953. Também participou ativamente no impeach-ment de Fernando Collor, tendo à frente o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, presidente da associação por três vezes. Em 1992 ele assinou, com o presidente da OAB, o pedido que deu início ao processo de cassação de Collor. Tinha então 95 anos de idade. Antes disso, em 1973, foi, junto com Ulysses Guimarães, candidato à Presidência da República, num ato simbólico para demonstrar a farsa das eleições indiretas da ditadura militar. Naquele tempo, os dois percorreram o país divulgando uma mensagem de resistência ao regime. "Foi um período difícil. Nas ruas de Salvador a polícia chegou a soltar cães em cima deles", diz o jornalista e acadêmico Murilo Melo Filho.
Somente a vigilância permanente pode garantir aos veículos de comunicação a devida liberdade para atuar. E entidades como a ABI têm importante papel nessa luta. Nos Estados Unidos, onde existem representações fortes como o Clube Nacional de Imprensa, os direitos dos jornalistas são assegurados de forma inquestionável. No Brasil, a batalha ainda não foi ganha. Um relatório divulgado neste ano pela News Safety, que monitora os ataques à imprensa no mundo, coloca o país em 11º lugar no ranking de lugares com mais jornalistas assassinados nos últimos dez anos. Nesse período, foram mortos aqui 27 profissionais da área. Além disso, notícias de redações incendiadas ou destruídas não são raras pelo interior do Brasil. "Fora de grandes centros como Rio, São Paulo e Brasília, a liberdade dos veículos de comunicação está submetida à violência e ao poderio econômico", diz Maurício Azêdo, o atual presidente da ABI. Ainda não se pode, portanto, baixar a guarda.
Pela democracia • Em 1923, Barbosa Lima Sobrinho lança o livro O problema da imprensa, um dos principais manifestos pela liberdade de expressão no Brasil. Três anos depois, assume pela primeira vez a presidência da ABI. • Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), a ABI luta contra a censura e pela libertação de jornalistas presos. • No fim dos anos 40, engaja-se na campanha "O petróleo é nosso", lançada em 1948 pelo Centro de Estudos e Defesa do Petróleo. • Durante o governo militar, torna-se uma das principais referências da luta contra a censura. Em 1975, promove um ato em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Participa das campanhas pela anistia, pelo fim da Lei da Segurança Nacional, por eleições diretas, pela convocação da Assembléia Nacional Constituinte. • No governo de Fernando Collor de Mello, integra o Movimento pela Ética na Política e sedia o Fórum pelo Impeachment, em maio de 1992. Barbosa Lima Sobrinho, presidente da ABI, foi autor do pedido de cassação, junto com o presidente da OAB na época, Marcello Lavenère. • Em 2004, a ABI posiciona-se contra a criação do Conselho Federal de Jornalismo, proposto pelo governo Lula, numa tentativa que foi o mais sério ataque à liberdade de imprensa desde os governos militares. A mobilização contra o conselho fez o governo desistir do projeto. |