PANORAMA ECONÔMICO |
O Globo |
20/11/2007 |
No Brasil, o pensamento convencional reage instantaneamente a qualquer argumento que duvide da visão mítica de país homogêneo. O sonho de uma mestiçagem nacional que igualou a todos está em óbvio conflito com a realidade e as estatísticas de um país que dá mais oportunidade a brancos e iguala pretos e pardos na mesma desvantagem. Os últimos anos mostraram como se reage de forma contundente a qualquer tentativa de debater a questão racial brasileira de forma contemporânea. O esforço dos negros de entenderem sua história, origem, identidade é visto como uma ameaça que legitimaria o racismo. Como se o racismo brasileiro precisasse de mais um reforço. Uma nação construída sobre três séculos e meio da mais bárbara forma de racismo, que é a escravidão, não pode, num passe de mágica, virar homogênea, mestiça e igualitária. Tem que trabalhar para isso. Uma parte do trabalho é amadurecer, no debate, o entendimento de sua própria identidade de nação multiétnica com desigualdades a serem corrigidas por políticas públicas, novas atitudes individuais e empresariais, mais reflexões, novos estudos. Sem medo de que o debate nos revele pior do que sonhamos ser; com a coragem de enfrentar os defeitos que o passado nos deixou, para assim eliminá-los no presente. Como fazer isso num país miscigenado? O Brasil não tem a exclusividade da miscigenação. Outros países têm também pessoas com diferentes graus de mistura. Lá, como aqui, as estatísticas exibem as unidades dos grupos. Os dados sociais brasileiros consistentemente mostram que as diferenças entre pretos e pardos são mínimas. Enorme é a distância entre os dois grupos e os brancos. Por isso vi com esperança o debate que renasceu na última década. Achei que com ele seria possível remover certos mitos paralisantes, como o de um país de igualdade racial, claramente uma piedosa mentira que contamos a nós mesmos. A reação forte ao início do debate mostrou que não há inocência na tese. Ela tem sido o meio mais eficaz de manter o status quo que favorece os brancos. Qualquer dúvida sobre o favorecimento dos brancos pode ser sanada com um olhar nas estatísticas. Mas se o leitor nem quiser olhar as "desigualdades duráveis", reveladas a cada nova Pnad, a cada Censo, basta olhar a paisagem humana da elite completamente dominada pelos de pele mais clara. Temos um gradiente de cor, mas isso não nos livrou das barreiras construídas contra a ascensão de pretos e pardos no Brasil. Quem nem quiser refletir muito sobre a composição da elite, basta ver em volta, no restaurante elegante. Eu fiz o mesmo no Canadá: em todos a que fui, vi negros com sinais exteriores de afluência nas mesas. Mas há quem diga que tocar neste tema é criar racismo; há quem sustente que a reflexão sobre a identidade negra pode legitimar uma ku-klux-klan brasileira; há quem ameace o país com a idéia de que a consciência da negritude levará à ascensão da consciência da branquitude. Ora, é preciso nunca ter ouvido falar na expressão "sabe com quem está falando"; nunca ter entendido o sentido do elevador de serviço; nunca ter investigado o que está por trás da expressão "boa aparência" para não perceber que, no Brasil, a branquitude existe. Só não se declara. A mistura étnica que houve no país não demoliu, infelizmente, os muros do preconceito. A natureza de uma sociedade que é mestiça, mas que se separa; que se separa e nega; que nega para melhor se manter separada, é um desafio para estudiosos, acadêmicos, pensadores. Portanto, o debate deve ser saudado. É instigante, bem-vindo. É uma chance de sermos diferentes no futuro. Não pode ser visto como uma ameaça. O debate que os negros estão oferecendo ao país vai demolir apenas o mito: de que somos um país igualitário, sem racismo. E pode ser o início do sonho igualitário a ser construído. Há muitas formas de se fugir da questão principal. Os cientistas provaram que não há raça do ponto de vista biológico. Isso foi apresentado como prova de que é ocioso discutir o racismo, quando é exatamente o oposto: a constatação científica só confirma que o racismo é baseado numa falsa divisão criada culturalmente. Os negros não são menos capazes, são desfavorecidos. Parte da construção da igualdade de oportunidades é a consciência das diferenças de origem e trajetória. Uma pessoa orgulhosa da sua história é uma pessoa com auto-estima recuperada. Ela se insere melhor na sociedade, tem maiores ambições e luta mais pelo seu futuro. Há quem tema esse "orgulho negro", como se ele pudesse legitimar atos agressivos de supremacia branca, ou criar nos negros um ressentimento social. Mas os que são discriminados é que devem discutir o processo de recuperação do seu espaço na sociedade. Ter orgulho de ser o que é sempre foi um passo fundamental da superação da desigualdade. Por que surgiu o movimento feminista? Exatamente da constatação da opressão da mulher. Elas precisaram (e como ainda precisam!) dizer a si mesmas que não são inferiores para alimentar a ousadia de ir além dos limites culturalmente impostos a elas. O mundo avança para mais igualdade exatamente quando, quem está em situação de desvantagem, se organiza para tentar mudar o que o excluiu. Isso não é assustador. A igualdade não é pasteurização. A diversidade é o princípio que reconhece as diferenças de cada grupo para melhor remover as desigualdades. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, novembro 20, 2007
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