Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 04, 2007

Merval Pereira

A democracia desfigurada


O momento não poderia ser mais apropriado. Quando o Congresso da Venezuela aprova superpoderes a Hugo Chávez, concretizando uma ameaça pressentida aos direitos individuais e possibilitando sua reeleição permanente, a Academia da Latinidade começa amanhã em Lima, no Peru, um seminário internacional que tem como objetivo principal analisar a situação atual da democracia na América Latina. A Academia da Latinidade, criada em 1999 para discutir a questão do multiculturalismo dentro de um universo já ameaçado pela hegemonia dos Estados Unidos, mesmo antes dos atentados de 11 de setembro de 2001, reúne intelectuais, na maioria de países de origem latina, e se propõe a intermediar as relações do Ocidente com o Oriente, tendo como base o fortalecimento da democracia.

É dentro desse aspecto mais amplo que se vai discutir como na América Latina, a pretexto de se contraporem à hegemonia norte-americana, governos colocam em risco o sistema democrático.

O seminário, cujo título geral é “Democracia profunda, reivenções nacionais e subjetividades emergentes”, vai debater os últimos acontecimentos na América Latina tendo como base os fenômenos conjuntos das assembléias constituintes de Venezuela, Bolívia e Equador, que, na definição do cientista político e secretário-geral da Academia, Candido Mendes, estão “literalmente desfigurando a democracia, criando a democracia plebiscitária, admitindo a eleição perpétua do presidente, vinculando os movimentos sociais aos sindicatos e eliminando ou reduzindo a liberdade de imprensa através das comissões de censura do povo”.

Em contraposição, o seminário vai analisar o desenvolvimento mais profundo da democracia no continente, com o exemplo bem-sucedido da “concertación” chilena e a possibilidade de que a nova presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, siga os mesmos passos, se distanciando do modelo venezuelano, que vem procurando se impor naquele país através do apoio financeiro.

E, sobretudo, discutir a situação do Brasil, que continua com a maciça popularidade do presidente, um líder que se apresenta ao mundo como o avesso do chavismo, apesar dos movimentos do PT surgidos nos últimos dias pela possibilidade de Lula disputar um terceiro mandato consecutivo.

A mesma questão surge no debate político da Colômbia, onde o presidente Alvaro Uribe, o avesso de Chávez na região e com o apoio intenso dos Estados Unidos, também abre a discussão sobre a possibilidade de disputar um terceiro mandato “para evitar uma hecatombe”. O que mostra que a democracia na América Latina sofre ameaças à direita e à esquerda, com o populismo, que será um dos temas principais dos debates.

O seminário reunirá especialistas europeus, como os sociólogos Alain Tourraine, da França, e Gianni Vatimo, e da região, como o argentino Torcuato di Tella e o boliviano Javier Sanjiés, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, entre outros. O Brasil estará representado, além do próprio Candido Mendes, pelos acadêmicos Hélio Jaguaribe e Sérgio Rouanet.

O secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, um dos artífices da política brasileira para a América Latina, abrirá o seminário, ao lado do ministro das relações Exteriores do Peru, José Antonio Garcia Belaúnde.

Para Candido Mendes, a questão é saber se, em tempos de hegemonia no mundo, a democracia virou o que os Estados Unidos querem que seja. E em que termos os países estão conseguindo ou não avançar nesse particular. “O problema da América Latina é o de que, diante do que está acontecendo com o chavismo, a marca da chamada contradição principal, que é evitar a hegemonia norte-americana, está desfigurando a democracia em função dessa prioridade”.

O que o ministro da Justiça, Tarso Genro, considera a grande mudança de patamar da política brasileira durante o governo Lula, que ele cunhou como “a plebeização da política”, é um fenômeno da política atual da América Latina, e vai ser analisada diante das diferentes conseqüências que produz em países como o Brasil e aqueles que sofrem a influência do chavismo.

Candido Mendes chama a isso de “a democracia da marginalidade, que vai adiante em função da consciência popular emergente”, e que poderá ganhar novas funções diante dos acordos que serão necessários para a formação de coalizões “depois de o PT ter perdido a chance de se transformar em mediador da marginalidade”.

Para ele, a questão fundamental que está colocada é como esse consenso popular continuará sem cair no populismo.

Na sua análise, a resposta popular a Lula não passa mais nem pelo partido, o PT, nem pelos sindicatos ou pelos movimentos sociais, mas pela percepção de programas como a Bolsa Família, pelo treinamento maciço de famílias rurais e o controle da migração urbana.

Segundo ele, não se trata mais de escolher entre o “lulismo” em troca do “petismo”, mas “de uma experiência inédita de percepção de progresso e da plena liberdade política, face à ameaça de um retrocesso”.

Salientando a diferença dos momentos políticos do Brasil e dos demais países da região que seguem o modelo chavista, Candido Mendes ressalta que a superação dos empecilhos “conduz o Brasil ao avanço da democracia profunda, que pode garantir a fidelidade do regime ao Estado de Direito”.

Segundo ele, o importante é que o presidente Lula esteja consciente de que essa ligação com as aspirações populares, reafirmada no dia-a-dia do governo, não se mistura com a tentação carismática de controlar o governo.

Arquivo do blog