Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 04, 2007

Ferreira Gullar: Outros estados do ser

A narrativa deixou-me tão impressionado que sonhei com a guerra das formigas
QUANDO MENINO , via, pelas ruas de São Luís, alguns personagens extravagantes ou estranhos, de que achava graça. Um deles era um cara de quase 30 anos, magro, que andava vestido com o uniforme do Ginásio São Luís, onde estudavam os jovens de famílias de mais grana. De quépi e botões dourados, um talabarte sobre o dólman amarfanhado, sobraçava uma bolsa escolar, rasgada, cheia de livros. Ele se inventava estudante por razões que jamais saberei. E ficava enfurecido quando os moleques troçavam dele. Não me dava conta do seu tormento e de nossa crueldade, ao tentar destruir a ilusão que ele criara para si.
Um dia apareceu, na quitanda de meu pai, um rapaz que pouco falava e não sorria nunca. Mas, certa tarde, quando estava sozinho tomando conta da venda enquanto meu pai dera um pulo em casa, o rapaz se aproximou de mim e começou a contar a história fascinante da guerra das formigas. Segundo ele, ali perto, no matagal que marginava o Campo do Ourique, assistira certo domingo a um combate entre as formigas negras e as vermelhas, travada sob as folhas do mato burro: os dois exércitos, providos de armaduras metálicas, escudos e lanças, sob o toque de clarins, travavam fragorosa batalha que atravessava os dias e as noites. A narrativa do moço deixou-me tão impressionado que, naquela noite, sonhei com a guerra das formigas.
Depois disso ele sumiu da quitanda. Perguntei por ele a seu pai, que era freguês nosso, e a resposta que obtive foi vaga. Só entendi por que, quando, ao passar de bonde pelo hospício que ficava próximo ao Areal, o vi debruçado na amurada, com um estranho brilho no olhar.
-Ele é maluco! surpreendi-me, mesmo porque nenhum contador de histórias me havia fascinado tanto quanto ele. Verdadeira ou não, tendo ou não acontecido no matagal do Campo do Ourique, aquela guerra das formigas tornou-se parte de meu mundo. Não obstante, a impressão doída que vi no olhar dele, ali, junto à amurada do hospício, me deixou ferido. E pela primeira vez perguntei-me o que era aquela coisa assustadora chamada loucura.
Resposta mesmo a essa pergunta nunca encontrei mas, no Rio, depois de conhecer Mário Pedrosa e Nise da Silveira, passei a vê-la de outro modo, de um modo parecido ao que me revelara a guerra minúscula das formigas sob o matagal, aliás, a extraordinária invenção daquele moço na quitanda de meu pai.
Mais tarde, descobriria, na revista "Fontaine", na Biblioteca Nacional, os poemas de Antonin Artaud, que me revelaram uma outra dimensão da vida ou, como ele mesmo afirmou, "os inumeráveis estados do ser".
Pelas mãos de Pedrosa e Nise, desci aos abismos deslumbrantes que me arrastavam para dentro das telas de Emygdio de Barros, de Fernando Diniz, de Rafael, de Isaac, os gênios revelados nos ateliês da pintura do Museu de Imagens do Inconsciente. Ali conheci Almir Mavignier, entusiasta das criações daqueles artistas anônimos. Deve-se a ele, de certo modo, a descoberta da genialidade de Emygdio, até então simples maluco que há 25 anos não dizia uma palavra sequer. Mas também à coragem intelectual de Nise da Silveira, que soube enfrentar e vencer todos os preconceitos que se interpunham a seu trabalho pioneiro no campo da psiquiatria. Graças a ela -que sempre contou com o apoio de Mário Pedrosa- as obras daqueles artistas se incorporaram ao patrimônio artístico nacional, como algumas de suas mais extraordinárias manifestações.
Não há a menor dúvida de que, depois de conhecer as obras daqueles artistas, alguma coisa mudou em mim. A densidade psíquica da pintura de Emygdio, assim como o espaço-outro surgido do mundo gráfico de Rafael, são parte do que sou, do meu eu profundo, do mesmo modo que estes versos, de um paciente de Nise, que se assinou apenas José D, e que dizem:
"Os grilos desmaiaram de madrugada
de tanto acalentar a noite.
O dia é para eles uma eternidade
no abismo neutro das ervas.
De tarde, com um palmo de sol,
as crianças foram ao rio se banhar
e uma delas se afogou.
Quando os homens procuravam o cadáver,
um menino gritou, com os olhos luzindo:
"Vocês não acham o afogado.
Saiu voando pelas águas
com uma asa branca e outra azul'".

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