Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, novembro 15, 2007

Merval Pereira Testando os limites

Ao mesmo tempo em que o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela suspende os debates eleitorais sobre a reforma constitucional, alegando que sua propaganda oficial é suficiente para esclarecer os eleitores, vem o presidente Lula insistir na perigosa tese de que Hugo Chávez pode ser criticado por tudo, menos por não ser um democrata. Anteriormente, já havia dito que o problema da Venezuela é o “excesso”, e não a falta de democracia. Considerar que seja possível existir democracia em excesso em algum país é uma posição que, por si só, revela traços autoritários, de alguma maneira expõe uma vontade de controlar as manifestações da sociedade civil, que já se apresentou em diversas ocasiões durante este governo, desde a tentativa de controle dos meios de comunicação, até a orientação oficial para os produtos artísticos financiados com verba de empresas estatais.

Imaginar que o fato de ter havido não sei quantos plebiscitos e referendos para aprovar os superpoderes que hoje detém o Executivo da Venezuela seja sinônimo de democracia, além do mais em excesso, é ter uma idéia bastante limitada do que seja o regime democrático, por desinformação ou desvio ideológico.

Uma democracia não depende apenas do voto direto, nem das consultas populares, mas da criação de um ambiente onde os direitos individuais estejam protegidos e acima da vontade do poderoso da ocasião, seja o guarda da esquina ou o presidente da República.

A democracia representativa está em crise no mundo todo, e a democracia direta, que surge aqui na América do Sul como uma solução manipuladora de esquerda, no Brasil volta e meia aparece como proposta por parte de setores do governo.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil e do jurista Fabio Konder Comparato, apresentou uma proposta de reforma política que abrigava essa antiga tese sua, a democracia direta à la Hugo Chávez, com a “exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação”.

Em diversos textos, o atual ministro da Justiça aborda a falência da democracia representativa e defende a organização de um novo Estado com “outras formas de participação direta, por meio de instituições conselhistas, que emergem da democracia direta”.

Entre esses, ele cita especificamente o controle dos meios de comunicação através de “conselhos de Estado”.

O ministro culpa “o ritualismo democrático-formal” como uma das causas da decadência do modelo representativo atual.

Sua proposta gerou tantas críticas que se transformou em uma sugestão, que acabou esquecida nos escaninhos do Congresso. O mesmo pensamento foi expresso recentemente pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que, durante uma palestra na abertura do seminário da Academia da Latinidade em Lima sobre a democracia na América do Sul, defendeu a tese de que a grande influência econômica sobre o processo eleitoral dificulta a participação das camadas excluídas da população, provocando grandes tensões sociais.

Daí surgiriam, segundo ele, iniciativas “para transformar o sistema político, para dar mais voz às camadas excluídas da população, através de referendos, plebiscitos, para que participem efetivamente do sistema político”.

À idéia de que um regime democrático não significa apenas promover eleições, mas criar um ambiente na sociedade capaz de respeitar o direito das minorias, a liberdade de expressão e os direitos humanos, também Samuel Pinheiro Guimarães contrapõe a tese de que “uma coisa é votar de quatro em quatro anos, outra é participar realmente do processo político”, o que só aconteceria, no pensamento dos que defendem a democracia direta ou plebiscitária, com a radicalização dessas consultas populares que, como na Venezuela, substituem muitas vezes o próprio Congresso.

O cientista político Bolívar Lamounier desconfia das intenções dos que propõem a democracia direta no país, e afirma que essa utopia tem muito pouco de “direta”, sendo inerente ao processo a interferência de quem convoca as consultas populares, como estamos vendo agora na Venezuela, onde o debate sobre detalhes da reforma está sendo interditado por um órgão supostamente independente como o Conselho Nacional Eleitoral.

Esse mecanismo, aparentemente democrático, tem se transformado nos países vizinho em instrumentos de manipulação política dos governantes, com plebiscitos dandolhes poderes quase totais, chegando na Venezuela a dar a Hugo Chávez um mandato de autonomia completa em relação aos demais poderes, como primeiro passo para agora obter poderes especiais para decretar o estado de emergência onde os direitos individuais seriam suspensos, e a possibilidade de reeleição, infinita.

A convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva para tratar da reforma política é uma proposta oficial do PT que tem em seu bojo todos os sinais de que pode servir de Cavalo de Tróia para mais uma tentativa de ampliar os poderes do atual presidente, e insistir na tese do terceiro mandato consecutivo.

Também no Congresso volta e meia um petista surge com a idéia de dar ao presidente da República poderes para convocar plebiscitos sem a intermediação do próprio Congresso, isto é, parlamentares que abrem mão de suas prerrogativas, aceitando docemente constrangidos a ampliação dos poderes do Executivo, na esperança de que esse poder não escape da influência de seu partido.

Sempre que a reação da sociedade surge com força, o governo recua, mas, ao que tudo indica, são movimentos estratégicos apenas. Certa vez o ex-ministro Luiz Gushiken disse que a sociedade havia dado os limites ao PT ao reagir a propostas que entendia como ameaças à democracia brasileira.

Pelo visto, o PT, e mesmo o próprio Lula, se empenham em testar esses limites

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