O Globo |
13/11/2007 |
É possível ver-se no bate-boca entre o rei da Espanha e o protoditador venezuelano, Hugo Chávez, um mero reflexo do colonialismo espanhol na América Latina, e, com um pouco mais de esforço, trazer esse colonialismo para o presente, vendo na atuação das empresas espanholas na região, em áreas tão estratégicas quanto telecomunicações e infra-estrutura, uma reprodução da antiga dominação colonialista. E é nessa visão simplista, que coloca Chávez como vítima, e ao mesmo tempo como aquele que reage à opressão monárquica, que é possível se separar o tipo de política que distingue os vários governantes da América Latina atual. Foi Fidel Castro, o ditador cubano, que, ao socorrer seu "companheiro" Hugo Chávez, deu a chave para a compreensão mais fácil do que se passa. Ele dividiu os governantes de esquerda da região em "revolucionários" e "tradicionais". A esquerda "tradicional", que seria representada por políticos como Lula ou Michelle Bachelet, do Chile, ou Tabaré Vázquez, do Uruguai, já não responderia às necessidades dos povos latino-americanos, que teriam nos "revolucionários" Chávez, da Venezuela; Evo Morales, da Bolívia; Rafael Correa, do Equador, ou Daniel Ortega, da Nicarágua, os governantes que refletiriam as reais aspirações das populações latino-americanas. A esquerda "tradicional" teria mais afinidades com a social-democracia européia, que não por acaso reagiu às críticas de Chávez na cúpula ibero-americana na pessoa do primeiro-ministro Zapatero, cujo partido, o PSOE, emitiu nota oficial apoiando a posição do rei da Espanha, Juan Carlos. Não por acaso, aos "revolucionários" já não basta a democracia representativa, e todos estão envolvidos, de uma maneira ou outra, em ações para ampliar seus poderes, transformando a democracia em uma formalidade apenas. Por outro lado, os da esquerda "tradicional" estão empenhados em não apenas fortalecer o sistema democrático como em promover a inserção de seus países no mundo globalizado, ampliando as possibilidades de progresso econômico, sem descuidar da distribuição de rendas. O populista latino-americano já foi definido como o governante que gasta mais do que pode em ações demagógicas, mas hoje, com a prevalência da tese do equilíbrio fiscal, essa definição saiu de moda. Hoje, populistas são aqueles governantes que, como Chávez na Venezuela, Morales na Bolívia, e Lula da campanha de reeleição e do segundo mandato, têm uma ligação direta com o eleitorado, acima dos partidos políticos. Mas essa é uma ligação tênue entre esses governantes. Segundo o professor Nelson Franco Jobim, especialista em política internacional, as revoluções tecnológicas é que movem a História, relembrando Marshall McLuhan. "A luta de classes não faz sentido num mundo de informação instantânea, em que nerds podem ficar bilionários criando do nada empresas de informática". O desafio é incorporar as massas ao processo produtivo e ao consumo para criar base social forte e estável, ressalta ele, destacando "um viés antiamericano, marxista e retrógrado" das políticas das chamadas esquerdas "revolucionárias". Já a consultora internacional Izabela Pereira, da Inter Patris Consultoria, faz uma divisão política dos países para além da confrontação esquerda e direita: o populismo (Venezuela, Bolívia e Equador), a social democracia (Chile, Uruguai e Peru) e modelos híbridos de governança (Argentina, Brasil, Colômbia e Paraguai). Segundo ela, apesar da constatação de que a democracia não tem satisfeito as necessidades das populações, não há uma negação de seu valor. A "desilusão democrática" leva a essa situação atual, em que a saída seria o fortalecimento do sistema democrático, e não sua supressão. O professor Nelson Franco Jobim reforça a tese dizendo que "o grande desafio da América Latina é fazer a democracia liberal funcionar, antes de tentar fazer experiências que ameaçam trazer de volta o passado caudilhista e o confrontacionismo tão a gosto de uma esquerda atrasada que ainda acredita em luta de classes e luta armada". Essa divisão entre as tendências de esquerda na América Latina tem outra catalogação, mais irônica. O venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales seriam os expoentes de uma esquerda "carnívora", ainda presa à mentalidade da Guerra Fria. Outra esquerda, "vegetariana", governa o Chile e o Brasil. É a nova tese de Álvaro Vargas Llosa, Plinio Apuleyo Mendoza e Carlos Alberto Montaner em "A volta do idiota", da Odisséia Editorial, os mesmos autores do polêmico best-seller "Manual do perfeito idiota latino-americano", lançado em 1996. O livro criticava líderes políticos e formadores de opinião que seriam responsáveis pelo subdesenvolvimento da América Latina. Crenças tais como "revolução", "nacionalismo econômico", "ódio aos Estados Unidos", "fé no governo como agente da justiça social", refletiam apenas um "complexo de inferioridade", segundo os autores. Eles agora "denunciam" que essas idéias ressurgiram com força na América Latina. Sejam "carnívoras" ou "vegetarianos"; "revolucionários" ou "tradicionais", o fato é que a esquerda da América Latina está dividida em termos de procedimentos e atitudes diante da democracia. Onde antes atuava o "ouro de Moscou", atuam agora os petrodólares de Hugo Chávez, fazendo com que seu peso político seja desproporcional ao peso geopolítico da Venezuela. Dependeria da atuação mais clara do Brasil, nos próximos anos, que essa balança pendesse para o lado da esquerda "tradicional", e a favor da democracia representativa, sem dubiedades. |
Entrevista:O Estado inteligente
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