Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 18, 2007

DANIEL PISA

Mitos lulistas

sinopse


Depois de cinco anos de governo Lula, algumas frases começam a ser repetidas e, assim, a ganhar ares de verdade para muita gente, seja simpática a ele ou não. Desconfio que seja uma forma de se conformar à realidade, pois mesmo quem considera esse governo ótimo não precisa de mais que alguns minutos de conversa para reconhecer que muitas promessas não foram cumpridas e muitos problemas não foram resolvidos. Então algumas expressões se espalham feito mantras, muletas espirituais para que a vida siga caminhando. Exemplos:

Lula chegou lá e a "elite" não o deixou fazer muita coisa.

Essa idéia tem dois aspectos curiosos. Primeiro, o de que ele "chegou lá". Bem, Lula era um operário de classe média no ABC paulista, com curso do Senai, quando começou sua carreira como sindicalista e político. Juscelino Kubitschek, a quem por sinal se deveu essa possibilidade de ascensão - e a quem a esquerda que acolheu Lula nos anos 70 e 80 acusou de "entreguista" por abrir o País a multinacionais -, também não era rico antes. E desde quando um bom governante se determina pela origem social, étnica ou regional? Mobilidade social é fundamental, mas não é ela que faz o bom ou o mau político.

O segundo aspecto curioso é a suposição de que existe uma conspiração da classe dominante para que a máquina oficial funcione a seu favor, como se fosse um mesmo estamento que - na má leitura da obra de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder - comanda a burocracia há 500 anos. Isso é um reducionismo tremendo e ignora a complexidade do Brasil. Há muitos grupos dependurados no governo, sim, e entre eles não estão apenas latifundiários e empresários, mas também sindicalistas e empreiteiros que financiaram as campanhas do PT. Quanto ao que o presidente pode ou não fazer, basta analisar o número de MPs que ele promulga e o número de cargos que seu partido e os aliados mudam, nos diversos escalões da administração pública.

Todo político mente e rouba; o governo não é pior que os outros.

Antes de mais nada é preciso dizer que muita gente acreditava com sinceridade que o PT fosse um partido menos fisiológico e corrupto do que os outros. Mesmo antipetistas concediam a ele o caráter de "único partido do Brasil". Depois Lula e a cúpula do PT mudaram suas idéias, o que seria louvável se não fosse pelo "timing": durante a campanha de 2002, com a inflação em disparada, depois de sustos nas pesquisas dados por Roseana Sarney e Ciro Gomes. A conversão do PT ao modelo econômico do governo anterior se deu por oportunismo, não por reflexão. E que haja tanta corrupção em seu governo - maior ou menor do que nos anteriores, não importa diante de tal escala - é lamentável. Corrupção existe em toda parte? Mas ela pode ser cultural ou anômala, punida ou impune, e todos sabem de qual tipo é a brasileira.

O Bolsa Família reduziu a pobreza e a economia vai muito bem.

Não é só o Bolsa Família que reduz a pobreza. O programa, que não nasceu em 2003 e tem limitações sérias - pois induz a geração de mais filhos e não tem porta de saída para uma vida produtiva e autônoma -, é responsável por um quarto da queda. Mais importante tem sido a geração de empregos formais e o aumento do poder aquisitivo. No entanto, a economia poderia ir melhor. O País é o que menos cresce entre os emergentes, sufocado por juros ainda altos e gargalos de infra-estrutura. O governo é incompetente em atrair investimentos produtivos de grande porte em parte por sua crença estatizante, que se vê de novo agora no plano da Petrobras para o tal megacampo de Tupi. Pode anotar: sem dinheiro estrangeiro, a estatal não conseguirá cumprir o que Lula - que um dia já foi chamado de Ali Babá e agora é chamado de sheik - anuncia, nem em quantidade nem em prazo.

Lula é sortudo e seu governo só vai bem por causa do bom momento da economia mundial.

Isso também é verdadeiro, mas parcialmente. Se algumas coisas não tivessem sido feitas, a bonança mundial não teria soprado quase nada. A gestão da política econômica não cometeu os erros da anterior. A dívida foi desdolarizada, as reservas ampliadas, a inflação contida ao máximo. Ao mesmo tempo, ajuda social, acesso ao crédito e o aumento real do salário mínimo foram acentuados. Com essa política de mão dupla, o governo parece andar. Não só os investimentos externos aumentam, mas também o mercado interno se amplia. Ver apenas equívocos nesse governo não leva a nada.

O governo democrático é uma expressão da sociedade, não pode ser melhor do que ela.

Eis um tipo de comparação impossível. Pode-se dizer que na sociedade há proporcionalmente mais gente honesta e trabalhadora do que no governo ou na classe política em geral? Certamente. Mas numa nação em que tantos empresários sonegam, o debate é tão pobre e atrasado e tantas pessoas praticam ou aceitam atos ilegais - de propinas a piratarias -, a começar pelos "privilegiados", como juízes e outros que deveriam dar o exemplo, realmente é difícil esperar avanços consistentes em menor tempo. A sociedade não pode se eximir. Mas é essencial cobrar do poder público que faça sua parte, porque é ele e só ele que bebe 37% da produção nacional e não consegue nem fiscalizar a distribuição de leite e a qualidade do ensino.

RODAPÉ

Comentei na semana passada que Philip Roth está sendo editado pela coleção Library of America, mas é o único entre os vivos (outros poucos tiveram a honra em vida, como Saul Bellow). Acabei de ler seu livro mais recente, Exit Ghost, e já nem sei como explicar que ele consiga fazer tantos livros bons em tão pouco tempo. É a última história de Nathan Zuckerman, protagonista de outros romances, um "alter ego" de Roth mais misantropo e paranóico. Ele está com 71 anos, acaba de passar por cirurgia de próstata e vai consultar um médico em Nova York, em 2004, quando vê anúncio de um casal de jovens escritores que quer trocar seu apartamento por uma casa nas montanhas, como a sua. Faz a troca, não sem antes se apaixonar pela moça. Daí em diante o livro, com sua mistura de descrição e ensaio, mergulha na Nova York pós-11/9 como se Zuckerman fosse o narrador de Conrad em A Linha de Sombra (que Roth leu recentemente) e visse ali uma galera de vultos.

Talvez Leyla Perrone Moisés, cujo livro Vira e Mexe Nacionalismo também elogiei na semana passada, dissesse de Roth que ele não faz "invenção verbal", como disse de Machado e Borges. Bem, tente escrever como eles... Ser inovador não é fazer como esse Steven Hall, autor do romance Cabeça Tubarão, em que o texto toma o desenho crescente de tubarão, algo que poetas gregos já fizeram há mais de 20 séculos.

CADERNOS DO CINEMA

Por falar em escritores inventivos, mas que nunca saíram da escrita sintática e narrativa, Guimarães Rosa é o tipo de autor difícil de filmar. Mutum, de Sandra Kogut, é uma adaptação da novela Miguilim, que originalmente pertence a Corpo de Baile. A história é atualizada e o protagonista se chama Thiago, mas os fatos principais estão lá. É um filme bonito, honesto, que não apela em momento algum. Não mostra, por exemplo, cenas como a do adultério; tampouco cai na solução banal da "câmera subjetiva", que outro cineasta talvez usasse no momento em que o menino põe os óculos e vê o mundo mais claro e renovado. Os atores, como João Miguel e Izadora Fernandes, estão muito bem.

Tudo é centrado em sua figura, em suas reações ao entorno, e, como o menino (Thiago da Silva Mariz) foi bem escolhido e dirigido, o espectador fica tocado. Mas o andamento é um pouco lento e parece haver um medo da palavra, de tão silencioso; e aí não dá para deixar de pensar em Rosa, em seus provérbios, paradoxos e dissonâncias. O que o filme perde é a crise de consciência, a crise interior de Miguilim, naquele contexto sertanejo entre Deus e Diabo, e suas dúvidas como "Você acha que o Rio Negro tem o demônio dentro dele?" e as frases que ouve de Dito como "O ruim tem raiva do bom e do ruim". Há um caráter de meditação moral que o filme - mais para José Lins do Rego do que para Guimarães Rosa - não consegue pegar.

UMA LÁGRIMA

Para Norman Mailer, morto aos 84 anos. Apenas em sua metáfora machões não dançam. Mailer queria porque queria ir além do sucesso de seu primeiro romance, Os Nus e os Mortos, e fez de tudo, cada vez mais prolixo e exibicionista. Como disse a Paulo Francis, tentou escrever de forma menos espontânea, parando de reagir aos fatos. Mas seu melhor era na reação aos fatos, como A Canção do Carrasco.

POR QUE NÃO ME UFANO

O jornalismo cultural brasileiro às vezes dá uma agonia... Leio na capa de uma revista: "Por que Yoko Ono é tão importante quanto John Lennon." Yoko Ono? É verdade, quem já viu uma performance ou instalação dela jamais esqueceu... de tão ruim que é.

Aforismos sem juízo
A consciência adverte: é bom moderar na moderação.

''''Sem dinheiro estrangeiro, a Petrobras não conseguirá cumprir o que Lula anuncia''''

''''Há um caráter de meditação moral em Guimarães Rosa
que o filme não consegue pegar''''

Arquivo do blog