artigo - Xico Graziano |
O Estado de S. Paulo |
20/11/2007 |
Refresca a memória um lampejo de História. Em 1549 chegaram os primeiros navios carregados de escravos africanos. Destinados, inicialmente, ao trabalho forçado nos engenhos de açúcar, os negros forjaram o Brasil moderno. Produziram diversidade racial. O escravismo era conhecido desde a Antiguidade. Decadente, seu golpe de morte chegou desferido pelo fim do Império Romano. Desaparecida da Europa, substituída pelo feudalismo e, depois, pelo capitalismo, a escravidão ressurgiu após mil anos, no Brasil. Os colonizadores inverteram a lógica do desenvolvimento linear da História. Uma volta ao passado. Na exploração do pau-brasil penaram os indígenas locais. Mas no ciclo da cana-de-açúcar, em Pernambuco e na Bahia, a mão-de-obra se abasteceu com o tráfico negreiro. Em 1559, o comércio humano foi legalizado por decreto do rei dom Sebastião, de Portugal. Raptados da África Meridional e Central (Angola, Moçambique e Congo), famílias inteiras trocavam, na marra, a selva pelo canavial. Estima-se que 4,5 milhões de negros africanos tenham sido trazidos para o Brasil nos três séculos de escravidão. Isso sem contar os mortos nos abomináveis navios, que se acredita atingirem 40% do número total de capturados. Uma duradoura barbaridade. O Abolicionismo remonta ao século 18, mas adquiriu relevância apenas em meados do século 19, a partir da pressão inglesa. Em 1845 a Inglaterra impôs o Bill Aberdeen, lei que dava poder à sua Armada para aprisionar navios negreiros. Em 1850, o Brasil aprovou a Lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico de escravos. Com a Lei do Ventre Livre se estabeleceu, a partir de 1871, a liberdade para os filhos da senzala. Abriam-se, vagarosamente, os grilhões da escravidão. Em 1884, o Ceará antecipou-se ao governo imperial e decretou o fim do jugo escravo em seu território. No ano seguinte, 1885, promulgou-se no país a Lei dos Sexagenários, garantindo liberdade aos maiores de 60 anos. Embora poucos sobrevivessem até tal idade, o gesto político acelerava o processo da mudança. A Abolição finalmente ocorreu em 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, filha de dom Pedro II. Longa caminhada da liberdade. O Brasil acabou sendo o último país das Américas a abolir a escravidão, 84 anos depois da proclamação da independência do Haiti, datada de 1804, que havia libertado os escravos dez anos antes. Em 1865, foi a vez de os Estados Unidos se livrarem do humilhante sistema. Por aqui, tardou, mas chegou, antecipando o fim da colônia e a Proclamação da República. Quando libertados pela Lei Áurea, ainda se contavam 700 mil escravos no País. Não à toa demorou a alforria. Intenso debate acometeu a sociedade da época, opondo a tradicional oligarquia a notórios abolicionistas. Os senhores de engenho e seus economistas afirmavam que a escassez de mão-de-obra, caso viesse a libertação dos escravos, afundaria o País na crise. O argumento era temerário. Por outro lado, alinhados ao liberalismo inglês, políticos e intelectuais denunciavam a opressão do sistema, brandindo a palavra da modernidade. Joaquim Nabuco, grande líder dos abolicionistas, apontava mais longe, juntando a causa da emancipação dos escravos à da reforma agrária. “Acabar com a escravidão não nos basta, é preciso destruir a obra da escravidão”, discursava em campanha eleitoral da época. Mais tarde, Rui Barbosa forneceu o contexto geral das mudanças: “Todas as reformas eram impossíveis sob o cativeiro. Eliminado ele, as mais atrevidas reformas são fáceis, pois o despotismo perdeu na escravidão o segredo de sua onipotência.” Comemorando um ano da promulgação da Lei Áurea, a oratória empolgante indicava o fim do Império. Começava a República. Caiu o modo de produção. Mas nem a economia açucareira, nem a mineração, muito menos a iniciante cafeicultura padeceram crise com a libertação dos escravos. Ao contrário. Em São Paulo, onde a partir de 1870 deslanchava a produção do ouro verde, a impossibilidade do trabalho escravo abriu as portas da imigração européia. O colonato do café, gerado principalmente com famílias de italianos, criou a base para o desenvolvimento paulista subseqüente. Homens livres constroem o futuro. Hoje é o Dia da Consciência Negra. A data lembra 20 de novembro de 1695, quando, há exatos 312 anos, acabou assassinado Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Escondidos na Serra da Barriga, entre Alagoas e Pernambuco, viviam naquele quilombo 20 mil refugiados. Centenas de outras localidades, escondidas País afora, abrigavam os fugitivos da pior opressão humana. Virou feriado. Permitido pela Lei 10.639, sancionada por Lula em 2003, em centenas de municípios o trabalho estará parado. Os movimentos negros esperam, com isso, afirmar seu proselitismo, centrado na idéia da igualdade racial. Outros, mais extremados, sem o perceber, reivindicarão “direitos históricos”, e podem estimular, ao invés de combater, o preconceito racista escondido nos cantos da sociedade. O Dia da Consciência Negra provoca um contraponto, festivo e político, ao 13 de Maio, data sempre lembrada, nas escolas do País, como o Dia da Abolição. Os movimentos sociais preferem valorizar a própria luta dos negros por sua libertação, simbolizada por Zumbi, a enfatizar a celebração da generosidade dos brancos, expressa na Lei Áurea. Cabe à pedagogia explicar a diferença às crianças. Nada fácil. Assim anda o mundo. Cultivando e, ao mesmo tempo, fazendo a História. Duro é agüentar a mania do brasileiro de fazer corpo mole. Haja feriado. |
Entrevista:O Estado inteligente
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