Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 16, 2007

Cachorro mimado manda no dono

Tem humano que é cego

Os adestradores avisam: quanto mais o dono mima,
mais o cachorro manda nele. E ainda dá risada


Laura Ming

Getty Images/Royalty Free


Eles são mimados, incoerentes, indisciplinados e não conseguem seguir regras. Estão dispostos a qualquer coisa para conseguir amor incondicional, inclusive a entregar o sofá, a cama, a casa e o controle total de suas vidas. Esse é o retrato que emerge de boa parte dos donos de cachorros quando se fala com conhecedores dos segredos mais íntimos da relação entre humanos e caninos: os adestradores. Desde que os cães saíram do quintal e entraram para a família, o adestrador é a última esperança dos donos de sapatos de grife destruídos, móveis de design irremediavelmente roídos, tapetes orientais malcheirosos e de vizinhos furiosos. A esperança tem seu preço: 50 reais a aula, em média, para um curso que dura de cinco a seis meses, ao fim do qual se espera que o cão tenha aprendido um mínimo de boas maneiras. O que na maioria das vezes acontece. Mas, acabado o curso e na falta de alguma mão forte em casa, é muito provável que ele volte aos velhos, pouco higiênicos e indisciplinados hábitos. "Um dos grandes problemas que nós enfrentamos é o temperamento dos donos. A maior parte tem cachorro só para mimar. Eles sabem o que precisam fazer, mas amolecem", constata o adestrador paulista Alexandre Rossi, dez anos de experiência, o primeiro a ser chamado quando um comercial ou um filme requer bichinhos treinados. "É comum o dono passar o dia inteiro fora de casa, sentir-se culpado de deixar o bicho sozinho e não repreendê-lo quando vê algo errado", concorda seu colega José Roberto Júnior, treinador há vinte anos. É aí que o adestramento desanda e, em casos extremos, a casa cai.

Não é realmente fácil ter disciplina, espírito de liderança, autoconfiança e eventualmente até um certo rigor para não ceder às chantagens emocionais que os caninos aprendem rapidamente a fazer, mesmo quando se recusam a seguir um único comando. Nos casos extremos, a solução talvez seja chamar Victoria Stilwell, uma "superbabá" para cães. Na mesma linha da Supernanny, que põe na linha crianças endiabradas no popular programa da TV inglesa, o canal a cabo GNT estreou na semana passada Ou Eu ou o Cachorro, em que o pestinha obviamente tem quatro patas. Todo humano responsável por um canino conhece a lição número 1, mas não custa repeti-la. "Cachorros viviam em matilhas. Eles precisam ter claro quem é o líder para respeitá-lo. E vão testar essa liderança no dia-a-dia", explica Alexandre Rossi. E a número 2. "O cachorro obedece por troca, seja para evitar, seja para ganhar alguma coisa. Quem não souber lidar com esse acordo não será obedecido", ensina.

Fotos Charles Dharapak/AP
Bush chama e o cachorro só vai quando lhe dá na bola: na casa do homem mais poderoso do país mais poderoso, Barney faz o que quer, na hora em que bem entende

Haja disciplina. Até George W. Bush, o homem mais poderoso do país mais poderoso do mundo, passou vexame recentemente com seu scottish terrier, Barney. Diante da imprensa, no jardim da Casa Branca, o presidente fez charme e chamou Barney para entrar. O cachorro fez que ia, mudou de idéia, virou as costas e durante alguns minutos ignorou solenemente a voz do dono; quando lhe deu na bola, magnânimo, obedeceu. Como disciplinador de cães, Bush deixa a desejar. A arquiteta Paula Naline, de São Paulo, se identifica com esse tipo de problema. Paula é dona de Gin, 4 anos, um airedale terrier adorável que foi treinado na, digamos, infância, mas não demorou a esquecer tudo e voltar a ser "levado". Pois o porte e a fofura de Gin fizeram com que fosse escolhido para "participar" do filme Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles. Orientado pelo adestrador Rossi, atuou como cachorro grande: aprendeu a andar ao lado da atriz Julianne Moore sem guia e lhe deu até selinhos na boca. O bom comportamento durou o tempo da filmagem, um mês. De volta para casa, em três dias resgatou o velho Gin e mais um pouco. "Ele está terrível. Pula nas empregadas, sobe em cima da mesa para roubar comida. Parece que está testando a gente o tempo todo", lamenta a dona. "Eu sei que devia repreender, mas não gosto de ficar dando bronca o tempo todo. É chato, né?"

Uma das regras mais difíceis de entrar na cabeça dos donos é a que estabelece uma simulação de indiferença ao chegar em casa. Em vez de se derreter e anunciar que "mamãe (ou papai) chegou", o correto é fazer de conta que você não está morrendo de vontade de que seu cão dê todos os sinais tradicionais de alegria – só assim ele vai aprender a não pular em cima da tia que morre de medo de cachorro ou da visita de cerimônia. Nos casos em que o estrago já foi feito, é preciso orientá-lo com coleira e firmeza. "A base mais complicada do treinamento da Belinha foi ensiná-la a não avançar nos convidados", relata Luis Oliveira, adestrador da poodle que, junto com a dona, Ana Maria Braga, recebe no programa Mais Você. Oliveira mandou pôr Belinha na coleira para ensiná-la a ficar quieta e aceitar a presença e o agrado das visitas. Ana Maria se rebelou – a coitadinha jamais tinha passado por tal humilhação. Finalmente convencida, deixou o adestrador trabalhar e Belinha custou, mas aprendeu. "Cachorros que ganham muito carinho precisam do dobro de repetição dos comandos. Ela estava acostumada a receber cuidados e a não ter de obedecer", diz Oliveira.

Quem não consegue conciliar disciplina com afeto deve ter em mente que os cães se sentem felizes quando se encaixam na ordem natural das coisas (a matilha, lembram-se?) e cumprem seu papel. Eles também precisam de rotina e de ocupação, como passear na rua, com guia, ou se jogar no imemorial passatempo de correr atrás da bola. "Para quem não tem tempo, quinze minutos jogando bolinha para o cachorro todo dia já melhora a qualidade de vida dele", aconselha o adestrador carioca Elber Martins do Nascimento. Também faz parte das regras de disciplina não dar comida ao cão à mesa durante as refeições (se achar que merece um petisco, dê no quintal ou na área de serviço) e não deixar nenhuma sujeira ocorrida sob seus olhos passar em branco (depois do acontecido, não adianta brigar – o bicho não saberá relacionar as coisas). Em resumo: dono de cachorro precisa mostrar quem manda, e mandar do jeito certo. "Ele tem de participar da maioria das aulas e pôr os comandos sempre em prática, senão é dinheiro jogado fora. Perder tudo o que foi ensinado leva menos de um mês", diz Rossi.

Quer ter um cachorro educado? Saiba que:

Holloway/Getty Images


1
A matilha tem um líder. Será ele ou você. Escolha

2 Se escolheu a segunda hipótese,é você, na superior condição de líder, quem permite que ele ascenda ao seu nível (ou à sua cama, ou ao seu lado no sofá)

3 Cachorro feliz é o que conhece as regras e se sente seguro com elas. Portanto, não é não mesmo

4 Gritar e dar escândalo porquenão consegue ser obedecido? O cachorro não se importa com seu descontrole

5 Até existe petisco grátis. Mas é melhor quando ele é usado para recompensar bons comportamentos

6 É um péssimo comportamento, para ambos, repartir a comida do líder com o liderado

7 Se não quer que ele pegue a picanha, não a deixe dando folga perto da churrasqueira

8 O hábito faz o cão obediente e anaboliza a sua memória. Basta um mês de relaxamento e adeus regras

9 Um segredinho: cães também seguem a mão invisível do interesse próprio. Obedecem para conseguir o que querem ou evitar o que não querem

10 Cachorro não é gente. Repita isso, como um mantra

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