Mas o fato é que Néstor Kirchner, depois de aplicar aos credores externos um calote de US$ 135 bilhões - o maior da história das finanças mundiais -, usou e abusou de subsídios e congelamentos para tirar a economia argentina de um longo período de recessão. Conseguiu fazer o PIB crescer a 8% anuais, reduziu os índices de pobreza de 50% para 25% da população e, ao final de seu mandato, o governo central registrará um confortável superávit fiscal. Daí a sua popularidade e a sua capacidade de transferir votos para a cônjuge.
Mas esse modelo de crescimento está esgotado. Sua exaustão se reflete no comportamento recente da economia e, também, nos votos apurados no domingo. Nos bolsões que recebem os benefícios do assistencialismo peronista, Cristina teve votação consagradora. Nos redutos da classe média, como as cidades de Buenos Aires e Córdoba, seus adversários venceram folgadamente. A economia, por sua vez, ressente-se de quatro anos de descuido com a estabilidade da moeda e de congelamento de tarifas de serviços públicos e de bens de consumo essenciais.
Sem remuneração adequada, os empresários locais não investiram. Os estrangeiros, inclusive brasileiros, que aplicaram na Argentina preferiram comprar empresas já existentes a abrir novos negócios. Assim, melhoraram as contas do governo, mas nada acrescentaram à capacidade produtiva do país. Há deficiências particularmente graves no setor de energia e são comuns os apagões.
Para que a Argentina continue a crescer, Cristina Kirchner terá de mudar algumas das políticas de seu marido. Bem a propósito, em seu primeiro discurso como presidente eleita, ela afirmou que "estenderá pontes" ao empresariado, com o qual Néstor passou quatro anos às turras.
No mesmo discurso, Cristina Kirchner declarou que "é necessário projetar outra imagem da Argentina". Isso significa que, ao contrário do que fez seu marido, ela dará prioridade à política externa e tratará de romper o relativo isolamento em que ficou a Argentina, tanto pelo calote como por causa dos métodos pouco diplomáticos com que Néstor trata governos e governantes estrangeiros. Durante a campanha, Cristina realizou viagens de boa vontade a Nova York, Washington, Paris, Berlim e às principais capitais da América Latina. Conhecidos os resultados da eleição, conversou longamente por telefone com o presidente uruguaio Tabaré Vázquez, com quem Néstor não falava há mais de ano e meio.
Cristina Kirchner anunciou que o primeiro país que visitará antes da posse, em 10 de dezembro, será o Brasil. Essa decisão tem um importante conteúdo simbólico. Indica que dará prioridade ao relacionamento bilateral e que se empenhará no processo de dinamização do Mercosul. Como observou o diretor de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp, Roberto Gianetti da Fonseca, "ela parece ter um pouco menos de ranço com o Brasil e é aparentemente mais simpática ao País do que Kirchner".
Mas há mais do que isso na decisão da presidente eleita. Néstor Kirchner, depois de hostilizar a comunidade financeira internacional e de repudiar a ajuda dos organismos multilaterais, tornou a Argentina demasiadamente dependente da ajuda financeira da Venezuela de Hugo Chávez. E Chávez, além de criar constrangimentos para seus parceiros - como os que provocou quando organizou e participou do comício, em Buenos Aires, contra o presidente Bush -, cobra deles um alto preço político pela ajuda financeira. Aproximando-se mais do Brasil e dos EUA, Cristina Kirchner certamente não aceitará a influência que Chávez exerce sobre o governo de seu marido.