Os enigmáticos anos finais de Rimbaud,
um dos grandes desbravadores da
literatura moderna
Rinaldo Gama
AFP | Divulgação |
Imagens de Rimbaud jovem, ainda na Paris letrada, e numa rara foto africana: busca da fortuna |
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O poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891) viveu, de certa maneira, duas vidas. A primeira, que foi até os 20 anos de idade, o transformou num dos mais luminosos escritores que seu país legou ao mundo, um desbravador da literatura moderna, cuja influência alcançaria tanto os surrealistas quanto a geração beat americana, para não falar de astros da música pop, como Bob Dylan. A segunda vida de Rimbaud começou com sua renúncia à poesia e a dedicação à atividade comercial – experimentada em outro continente, bem distante da pequena Charleville, onde nasceu. Se a primeira das existências do poeta já havia sido estudada e difundida à exaustão, a segunda mantinha-se ainda envolta em sombras e erros, finalmente apagados no livro Rimbaud na África – Os Últimos Anos de um Poeta no Exílio: 1880-1891 (tradução de Mauro Pinheiro; Nova Fronteira; 496 páginas; 59,90 reais), de Charles Nicholl, uma biografia de fôlego, que se lê sem esforço.
Mesmo trazendo à tona somente um breve relato dos tempos em que Rimbaud ambicionava uma carreira literária, o trabalho de Nicholl tem, nos capítulos voltados a tal período, um de seus pontos fortes. Com pinceladas incisivas, o biógrafo traça um retrato impecável daquele Rimbaud que, ainda adolescente – contava, então, apenas 16 anos –, se instalou em Paris, para virá-la de cabeça para baixo, com sua poesia inovadora e seu comportamento extravagante. Tendo se dirigido à capital francesa a convite do poeta Paul Verlaine, para quem escrevera uma carta que se fazia acompanhar de alguns versos, Rimbaud acabou iniciando com ele um rumoroso relacionamento homossexual. O affair inspiraria, "ao menos em parte", conforme atesta Nicholl, o impactante poema Uma Temporada no Inferno (1873), para muitos a obra-prima do autor, na qual, antecipando o que faria depois, Rimbaud escreveu: "Chega de frases. Não vejo a hora em que tombarei no vácuo".
Foi atrás desse "vácuo" que Nicholl seguiu. Após redigir seus últimos textos literários, em 1874, e antes de mergulhar na sua jornada africana, Rimbaud zanzou pela Europa, em ocupações diversas. Em agosto de 1880, desembarcou no porto árabe de Aden, onde se empregaria como assistente numa firma de café. Seu propósito era ganhar dinheiro; se possível, fazer fortuna. Para tanto, suportaria as arriscadas caravanas em meio "a desertos abrasadores", as doenças, o tédio. Além de trabalhar com café, Rimbaud comercializou, entre outros produtos, couro, tecidos e armas. Isso deu margem à versão de que abandonara a poesia para vender fuzis. Também se tornou recorrente afirmar que Rimbaud se envolveu com o tráfico de escravos, outra informação falsa, como Nicholl prova, baseando-se em documentos e outras evidências. Na biografia fica claro, contudo, que o escritor tolerava a prática escravagista.
Ao longo de todo o livro, Nicholl recorre à correspondência do poeta e às memórias de seus contemporâneos. Às vezes, lança mão de outro expediente eficaz: descreve suas impressões de lugares e ambientes que Rimbaud conheceu. Quando o escritor morreu, no hospital da Conception, em Marselha, aos 37 anos de idade – menos de seis meses depois de ter a perna direita amputada devido a um câncer –, o funcionário encarregado da ficha de seu óbito rabiscou no espaço destinado ao endereço: "De passagem". Queria dizer que Rimbaud não era da cidade – de fato, viera da fazenda da família, em Roche –, mas acabou dando a melhor definição que se poderia ter dele: alguém que parecia estar sempre de mudança. Rimbaud quis fugir do passado, da poesia – de si mesmo. Sua segunda vida, no entanto, só existiu, e continua despertando interesse até hoje, porque houve a primeira.