Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 19, 2006

Rombo impede crescimento que taparia o rombo


VEJA
O dilema do ovo e da galinha

Se o país crescer muito, o déficit da Previdência some, mas o país só cresce se acabar antes com o déficit da Previdência. Esse é o labirinto onde vagam os especialistas. Quem está certo?


Marcio Aith



Poucas polêmicas parecem tão enfadonhas e confusas quanto a que envolve a saúde financeira da Previdência Social. A discussão enreda uma miríade de projeções econômicas e variáveis demográficas jogadas com displicência num debate guiado por interesses eleitorais e quase sempre contaminado pelo viés ideológico. De tão absurda, a discussão consegue produzir diagnósticos que vão do problema total ao problema nenhum. É quase lugar-comum a noção de que, sem aumentar a idade mínima para a aposentadoria, entre outros ajustes, a Previdência entrará em colapso em menos de dez anos. Mas nas últimas semanas surgiu mais uma solução mágica no debate econômico: um cálculo otimista. Segundo esse cálculo, se a economia brasileira crescer 6% ao ano, a partir de 2025 a Previdência deixará de ser deficitária para tornar-se superavitária. O autor da projeção, o especialista em finanças públicas Amir Khair, argumenta que o crescimento da massa salarial e a formalização do mercado de trabalho (que dependem do avanço do PIB) elevarão as receitas da Previdência de modo a pagar, com sobra, as pensões, aposentadorias e auxílios-doença.

Recebido com júbilo por setores contrários a uma nova reforma previdenciária, o trabalho tem como único mérito estar matematicamente correto. É possível que, se o país crescer 6% por dezenove anos ininterruptos, as receitas previdenciárias vão crescer mais rapidamente do que as despesas previdenciárias e o sistema voltará a um equilíbrio visto pela última vez há dez anos. O problema, no entanto, é que o estudo não explica como o país conseguirá crescer tanto e por tanto tempo sem reformar a Previdência. Com essa omissão, adiciona uma espécie de "elemento Tostines" a um debate já maluco: a Previdência está quebrada porque o país não cresce ou o país não cresce porque a Previdência está quebrada? A resposta a essa pergunta é: com seu rombo atual de 40 bilhões de reais por ano, o desastre da Previdência determina muito mais o baixo crescimento da economia brasileira do que o inverso. Para cobrir a diferença entre o que o sistema arrecada com seus tributos específicos e gasta em benefícios, o governo deixa de investir em educação e em infra-estrutura, endivida-se e suga das empresas e das pessoas, por meio de tributos, os recursos necessários para gerar conhecimento, criar empregos e modernizar fábricas.

A necessidade de cobrir o rombo previdenciário vem sendo um dos principais motivos pelos quais o Brasil lidera o ranking mundial de juros reais e tem uma carga tributária de 40% do PIB. Não é por outra razão que o problema previdenciário se transformou no maior nó fiscal brasileiro. Em 1988, quando a Constituição foi promulgada, o INSS era superavitário e gastava com aposentadorias e pensões 2,5% do PIB; em 2006, dezoito anos depois, gasta entre 7,8% e 7,9% do PIB e produz um déficit equiparável ao dobro do lucro da Petrobras. É óbvio que o baixo crescimento da economia brasileira (2,5% do PIB, em média) também prejudica as contas da Previdência, como sustenta Khair. Mas isso não encerra a discussão. A experiência tem mostrado que o déficit previdenciário brasileiro aumenta mesmo em anos de fartura. Foi, por exemplo, o que ocorreu em 2004, quando o PIB saltou 4,9%, mas, mesmo assim, o rombo da Previdência pulou de 1,7% para 1,81% do PIB. Como isso ocorre? Por vários problemas que o trabalho do especialista dá como resolvidos ou ignora. O mais preponderante deles são os sucessivos aumentos reais (acima da inflação) concedidos ao salário mínimo durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e os quatro anos de Lula. Como dois terços dos aposentados recebem um salário mínimo, as despesas do INSS explodiram, enquanto as receitas permaneceram praticamente estáveis. O Brasil tornou-se o único país do mundo onde aposentados recebem reajuste acima da inflação. Dado o histórico brasileiro de populismo previdenciário, se a economia crescer o que Khair supõe ser necessário para sanear a Previdência, é provável que os próximos presidentes se sentirão tentados a repassar parte da bonança para os aposentados.

Há ainda o nó demográfico – também mais determinante dos problemas da Previdência do que o baixo crescimento da economia. Como será possível, somente com a expansão do PIB, sustentar no futuro o sistema atual de previdência que permita à classe média aposentar-se antes dos 55 anos tendo uma expectativa de vida escandinava? Segundo dados do IBGE, a população acima de 60 anos vai crescer 3,8% ao ano nos próximos 25 anos. Se isso se confirmar, e se muitos brasileiros continuarem a se aposentar aos 55 anos, não haverá taxa de crescimento viável para segurar tanta demanda, por tanto tempo, de benefícios previdenciários.

Um dos maiores defensores de uma ampla reforma da Previdência, o deputado Delfim Netto fez os cálculos e concluiu que, mantidas as atuais condições de crescimento da economia brasileira, o sistema previdenciário estará insustentável em poucos anos. Delfim diz que, em se tratando de projeções previdenciárias, se recomenda não sacar da cartola variáveis muito distantes da realidade. "Não que o papel não aceite. Ele aceita tudo. Inclusive equações exponenciais que se prestam a resolver todos os problemas do mundo – desde, é claro, que se ajeitem as variáveis direitinho, de forma a se atingir o objetivo desejado", diz ele. Khair parece ter ajeitado direitinho a variável do crescimento. Só não explicou como adaptá-la à realidade.

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