Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 05, 2006

REINALDO AZEVEDO Vão bater lata!

O GLOBO



Vou voltar ao tempo da minha catapora trotskista — todos temos direito a uma bobagem na vida. Eu me curei cedo. A crise no Brasil é de liderança. Só que não da classe operária, mas das elites, estejam onde estiverem: na academia, nos partidos, no jornalismo ou numa casinha de sapé. A capacidade de se dizer bobagem no país é superior à multiplicação de malabaristas em sinal de trânsito e de funkeiros e moleques que batem lata instruídos por ONGs. Se burrice fosse poesia, John Donne e Yeats seriam lidos nas esquinas. Se fosse música, nasceria um Mozart por dia; se fosse prosa, Machado de Assis seria o nosso escritor de segundo time. A esta altura, a esquerda, que agora aprendeu a ser otimista (ela era mais interessante quando odiava o capitalismo), já se pergunta: "Mas por que este reaça está tão pessimista?"

Confesso que fiquei um tanto chocado, constrangido até — é quando fico sem fala, o que é raro — com o debate lançado pelo Babalorixá de Banânia sobre uma Constituinte ad hoc para fazer a reforma política. A idéia, que classifiquei de "Golpe dos Juristas", ganhou o assentimento de alguns luminares do direito e da universidade porque, vejam só, disse um deles: "Esse Congresso não faz nada mesmo." Um dos medalhões do colunismo político saudou em seu jornal: "Finalmente, Lula teve uma boa idéia." Ives Gandra, com quem concordo em muita coisa, disse "sim", mas fez uma exigência: "Há de ser uma Constituinte sem políticos."

Pensei em subir algum morro no Rio ou ir para a periferia de São Paulo para me juntar a Regina Casé e também bater lata. Mas sou ruim da cabeça, de onde se tiraram dois tumores, e doente do pé. No primeiro passo mais ousado de dança, quebraria o pescoço. Cada um com as suas impossibilidades. As minhas são muitas: ultimamente, tenho tido dificuldade até para entender propaganda de refrigerante. Por que se faria uma Constituinte?

Houve, por acaso, algum rompimento da ordem institucional? Algum golpe de Estado foi dado ou vencido? Vivemos ou a conflagração revolucionária ou um período termidoriano que esteja a pedir uma nova Carta? Como é que a Ordem dos Advogados do Brasil tem o topete de noticiar em seu site que "Lula convoca a Constituinte se OAB for favorável"? Quem conferiu tal papel à Ordem? Qual é o seu poder de representação? Como é que uma proposta obviamente inconstitucional ganha os jornais na forma de uma questão plausível?

Imaginem vocês se, em democracias consolidadas como as européias ou a maior de todas elas, a americana, um presidente ou premier ousaria pensar alto algo parecido... Nunca! Seria escorraçado. Aqui, o Apedeuta acusa o Congresso de não poder conduzir a reforma política porque legislaria em causa própria, e nada acontece. Pior: recebe o apoio de jornalistas e acadêmicos, o que mostra o poder de sedução do "apedeutismo". Manipulando o debate, como um titereiro, está Tarso Genro, que tem complexo ou de Robespierre ou de De Gaulle: vive querendo fundar e refundar repúblicas.

A proposta, na qual a OAB ficou de pensar (Santo Deus!), é inconstitucional, e o simples debate é indecente. Ora, perguntarão, que mal há em conversar a respeito? Há, sim. As bases fundadoras de uma democracia são inegociáveis, a menos que se queira flertar com forças que querem solapá-la. A proposta de Lula e de Genro nada tem de inocente. Criar um choque de competências no Legislativo e atropelar o Congresso é uma das etapas da consolidação do poder do Moderno Príncipe. O ministro das Relações Institucionais sabe tão bem quanto eu que tal "receita" está prevista no manual.

A reação da imprensa brasileira foi pífia. No mais das vezes, limitou-se a ouvir gente contra e a favor, nesse isentismo obscurantista que nos vai tornando a todos reféns do PT. Nesse passo, haverá o dia em que alguém sugerirá que comecemos todos a andar de quatro, e a mídia, isenta e independente, ouvirá os que são contra e os que são a favor. E será a prova de que já estaremos, então, andando de quatro. Vão bater lata!
REINALDO AZEVEDO é jornalista (mahfud@uol.com.br) — www.reinaldoazevedo.com.

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