Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 09, 2006

Merval Pereira - O fator Venezuelal O Globo



O Grupo dos Três do Sul, como se denomina a união selada entre Brasil, Argentina e Venezuela, vem sendo articulado nos bastidores há muito tempo. A entrada da Venezuela no Mercosul foi uma iniciativa conjunta de Brasil e Argentina, dentro de um projeto de integração regional não apenas física, mas abrangendo as áreas da política, economia, cultura e mesmo militar. A união tem projetos importantes para a região, como uma empresa de energia comum ou um banco de desenvolvimento regional. A tese, defendida pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães em diversas palestras nos últimos anos, reunidas no livro “Desafios brasileiros na era dos gigantes”, é de que a América do Sul, com o Brasil de um lado e a Argentina de outro, perderia a sua importância política.

O projeto com maior potencial de gerar desentendimentos com os Estados Unidos é o da união no setor de energia e petróleo com a Venezuela, considerada “uma outra Arábia Saudita”. A América Latina tem cerca de oito trilhões de metros cúbicos de gás, e nesse campo o Mercosul é um parceiro importante, com a Venezuela e o Brasil e a proximidade com a Bolívia. O peso político da região aumentaria pela capacidade de influência na estabilidade do mercado internacional de energia.

O ex-chanceler Celso Lafer, porém, vê a entrada da Venezuela como uma ameaça ao projeto Mercosul, “que foi um dos grandes projetos políticos e econômicos da diplomacia brasileira pós-ditadura, no sentido de procurar trabalhar em conjunto no âmbito internacional”. Para ele, Hugo Chávez trabalha o conflito com o Peru, com a Colômbia, sem esquecer que a Venezuela tem contenciosos territoriais complicados, de espaços marítimos, entre eles a Guiana e a Colômbia.

Lafer acha que corremos o risco “do isolamento dentro da nossa própria região, o que se procurou evitar desde o tempo do Visconde do Uruguai”. Agora, com as dificuldades da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Mercosul e os acordos regionais que ele envolve se tornam cada vez mais complicados, na visão do ex-chanceler: “A negociação com os Estados Unidos (4 + 1), com o Chávez, não existe, nem com a Europa. A idéia de que o Mercosul tem um conjunto de valores próximos dos da União Européia inclui a democracia, a cláusula democrática, os direitos humanos, e o Chávez é a antítese disso”.

O professor de história contemporânea Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, entende que a inclusão da Venezuela no Mercosul tem mais motivação econômica do que política, e tem uma visão oposta à de Lafer sobre as conseqüências para o bloco regional do fracasso de Doha. Segundo ele, agora “vai haver uma guerra de todos contra todos, e mais do que nunca o bloco regional é importante”. Ao contrário, ele acha que, se Doha desse certo, todos abririam as fronteiras, tirariam os subsídios, e os blocos regionais perderiam a força.

A união com a Venezuela pode servir, também, para neutralizar o crescimento da China na América Latina, que já passou o Brasil na venda de manufaturados. Segundo Teixeira, a China estaria ampliando seus espaços no comércio exterior porque teme um bloqueio econômico por parte dos Estados Unidos. “Uma das vertentes da política externa chinesa é o cenário de uma nova guerra fria com os Estados Unidos, que tentariam asfixiar economicamente a China, cortando matérias-primas, energia e alimentos. A América do Sul é fornecedora desses três elementos”.

Recentemente, a China fechou um amplo acordo com a Venezuela, de fornecimento de petróleo, mas também de vestuário, que agora terá que ser revisto porque a prioridade é do Mercosul. Todo o fardamento do Exército venezuelano, cerca de cem mil peças, foi comprado na China, fornecimento que poderia ter sido feito pelo Brasil. Há também uma comissão da China negociando com Evo Morales, na Bolívia, muitas vendas para a Argentina, especialmente manufaturados, e está deslocando o Brasil de Angola. Algumas empreiteiras brasileiras em Angola sentiram o impacto e já perderam grandes projetos para a China.

Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty, ressalta que “Mercosul significa Brasil e Argentina, da mesma forma que União Européia significa Alemanha e França e Nafta significa Estados Unidos e Canadá”. Pinheiro Guimarães acha que o Mercosul enfrenta três desafios de curto prazo “no processo de articulação de um papel político autônomo no sistema mundial multipolar em gestação”:

a) resistir a uma absorção na economia e no bloco político norte-americanos, que está avançando rapidamente, de maneira disfarçada, por meio das negociações da Alca e dos TLCs e da dolarização gradual;

b) enfrentar uma possível intervenção militar externa na Colômbia e, eventualmente, em toda a Região Amazônica;

c) recuperar o controle sobre suas políticas econômicas, doméstica e externa, no momento sob o controle do FMI (e da OMC). E, sem uma cooperação próxima entre Brasil e Argentina, “a ação política coordenada do Mercosul e, mais ainda, uma ação política comum na América do Sul seriam uma total impossibilidade”.

O embaixador faz críticas à falta de coordenação política do Mercosul e ironiza dizendo que “é possível concluir que os esforços de coordenação política dos países do Mercosul têm sido mais bem-sucedidos com relação a dois tópicos de especial interesse para os objetivos da política dos Estados Unidos: o desarmamento dos países da região e a manutenção de regimes formalmente democráticos, transparentes e abertos à influência externa, nos planos político e econômico”. ( Amanhã, a corrida armamentista )

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