Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 08, 2006

Merval Pereira Fidel, Chávez e nós- Jornal O Globo



A ida às compras do presidente da Venezuela Hugo Chávez no mercado internacional de armamentos, e a doença do ditador de Cuba, Fidel Castro, colocaram a região no centro das atenções mundiais, justamente no momento em que o Brasil assume a presidência rotativa do Mercosul que, em sua recente reunião em Córdoba, teve a presença de Hugo Chávez, de Evo Morales da Bolívia e de Fidel Castro, os dois últimos como convidados especiais, e Chávez já no papel de membro pleno.

Se levarmos em conta que, segundo o pensamento do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o número dois do Ministério das Relações Exteriores, o objetivo da nossa política externa é a construção “paciente, persistente e gradual da união política da América do Sul” e uma recusa “firme e serena de políticas que submetam a região aos interesses estratégicos dos Estados Unidos”, e o Mercosul “é um instrumento essencial para atingir esse objetivo”, vemos o teor explosivo dessa união.

A presença de Fidel no Mercosul por enquanto é oficiosa, pois ela fere a chamada “cláusula democrática”, que já evitou golpes no Paraguai. Mas o Brasil quer Cuba não apenas no Mercosul como também na OEA, e já teve recusadas iniciativas nesse sentido.

Na opinião de Pinheiro Guimarães, reforçada no seu livro recentemente lançado “Desafios brasileiros na era dos gigantes”, essa cláusula “é um desvio do tradicional princípio sul-americano da não-intervenção em assuntos internos e pode gerar, no futuro, questões delicadas no momento de sua implementação, com sua aplicação seletiva e manipulada por pressões externas”.

O presidente da Venezuela, durante sua visita à Rússia, assinou contratos avaliados em US$ 3 bilhões. Além de adquirir jatos russos Sukhoi-30 para substituir seus caças F-16, de fabricação americana, comprou também helicópteros e mísseis terra-ar. E depois foi visitar algumas ditaduras da região: Irã e Bielo-Rússia. Já Evo Morales mandou o vice-presidente negociar um “amplo acordo” com Washington, e o porta-voz da Casa Branca disse que ele tinha um discurso duplo, por que naquele momento Morales estava na reunião do Mercosul em Córdoba com Fidel Castro e Chávez falando mal dos Estados Unidos.

A doença de Fidel Castro está deixando o governo brasileiro em palpos de aranha. Ontem, o chanceler Celso Amorim disse que essa era uma questão interna de Cuba na qual o governo brasileiro não se intrometeria. O deputado Fernando Gabeira estranhou essa afirmativa: “Na Europa já estão discutindo alternativas, e os Estados Unidos mais claramente ainda. Apesar de ser uma questão interna de Cuba, é preciso traçar alguns cenários possíveis e tentar definir a posição do Brasil”.

A questão de Cuba é vital para o equilíbrio do hemisfério, e a posição que o Brasil venha a tomar “pode vir a ser decisiva”, comenta Gabeira, para quem, hoje, há dois pólos claros: “Bush querendo intervir em Cuba, e o Chávez querendo ser o sucessor”. Para Gabeira, a decisão de manter em Cuba como embaixador durante todo esse período Tilden Santiago — um ex-guerrilheiro que treinou em Cuba e lá esteve exilado — “nos deixou um tanto desguarnecidos em termos de análise fresca e independente”.

“Quando houve a repressão aos intelectuais, fiz uma declaração contra a prisão do Raul Rivera, e ele disse que não condenava Cuba porque era ‘da família’”, relembra Gabeira. O que mais o incomoda é que o governo brasileiro pode até ter boas informações sobre o estado de saúde de Fidel, devido à proximidade com o governo cubano, “mas não as passa porque raciocina como a ditadura lá, a questão é segredo de Estado, segredo nosso em relação à direita”.

Gabeira ironiza dizendo que parece que “eles sentimentalmente não podem conviver com a idéia de que Fidel Castro é perecível, e isso transforma a política em relação a Cuba numa política sem transparência”. Nos últimos dias houve uma informação, divulgada pela “Folha de S.Paulo”, de que o governo brasileiro havia recebido a informação de que Fidel estaria com câncer, o que foi negado. “Mas é possível que tenham sido mesmo informados, porque eles são da copa e cozinha”, desconfia Gabeira, que quer saber também detalhes do que foi fazer no Itamaraty um enviado especial do governo norte-americano.

“Houve uma conversa no Itamaraty com um enviado americano, que teria apresentado um plano do governo dos Estados Unidos. Que plano é esse? Qual foi a posição do governo brasileiro? O que a Europa está pensando sobre o assunto?”, pergunta-se Gabeira, que explica que não está pedindo ao governo que concorde com ele, “mas que venha a público discutir transparentemente a política do Brasil. Compreendo a delicadeza do tema em função das amizades pessoais e das questões sentimentais, mas o Brasil não pode mais conciliar com esse tipo de limitação. Não queremos negar a amizade, mas queremos que eles se comportem como estadistas”, critica.

Também o ex-chanceler e cientista político Celso Lafer acha que estamos introduzindo no âmbito do Mercosul uma lógica da tensão que só beneficia Chávez, “que está dominando o cenário político da região e colocando em questão a própria liderança do presidente Lula e a do Brasil. Por que ele tem o dinheiro dos petrodólares, e responde à sublevação dos particularismos do movimento antiglobalização”.

Para ele, a entrada do Chávez no Mercosul fere toda lógica da negociação regional, traz para dentro um elemento de instabilidade. “A lógica do Chávez é a tal da revolução bolivariana, que busca o conflito, a tensão. O interesse do Brasil na América do Sul é trabalhar a convergência, trabalhar a cooperação e não o conflito. O armamentismo em que ele agora está envolvido é também um intensificador de tensões internacionais e regionais”. (Continua amanhã)

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