Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 02, 2006

Merval Pereira - Copa da corrupção




O Globo
2/8/2006

À medida que as investigações do escândalo das sanguessugas chegam mais perto do Poder Executivo, com a possibilidade de convocação dos ex-ministros da Saúde envolvidos diretamente no esquema de superfaturamento das ambulâncias, a disputa entre a CPI e o governo federal pelo controle das investigações fica mais evidente. Informações que chegaram a membros da CPI dão conta de que o governo estaria empenhado em desarticular as ações da comissão e a aumentar o papel da Controladoria Geral da União, para assumir a paternidade das investigações como demonstração de que combate a corrupção, e não compactua com ela.

Já a apresentação dos dados feita semana passada pelo ministro Jorge Hage, da Controladoria Geral da União, e pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, que critiquei aqui como evidência do uso da máquina pública a favor da candidatura de reeleição de Lula, faria parte dessa estratégia. O corregedor Jorge Hage não desmente a intenção de defender a posição do governo, conforme declarou na entrevista coletiva em que divulgou a atuação da CGU, afirmando que “o atual governo sente-se no dever de fazer esta prestação de contas à sociedade brasileira e mostrar que está cumprindo com o seu dever”.

Em mensagem enviada a mim, ele garante que os números da empresa Planam que usei em minhas críticas foram divulgados de forma incompleta, “intencionalmente ou não”, porque revelavam apenas a movimentação da empresa-matriz, e não do Grupo Planam, que inclui as demais participantes da fraude: a Klass, a Sta. Maria e a Enir EPP. Ao contrário do que escrevi, diz Hage que os números divulgados não demonstram crescimento da movimentação financeira do Grupo Planam no governo Lula. “Pelo contrário, o que se observa é uma queda significativa no ano de 2005 e relativa estabilidade nos demais anos”.

Para fazer a afirmativa, o corregedor se utiliza de um artifício: pelos números que me enviou, a movimentação do grupo Planam foi em 2000 de R$ 721.723,28; em 2001, de R$ 6.079.648,28; em 2002, de R$ 23.563.329,72; em 2003, de R$ 27.756.347,49; em 2004, de R$ 24.828.273,75; e em 2005, de R$ 14.713.913,96. Como se vê, é preciso muito boa vontade para negar que a Planam movimentou mais dinheiro no governo Lula do que no anterior. Bastaria somar as parcelas para chegar-se à conclusão de que o que afirmei, com base na CPI, é verdade.

Errei, sim, ao afirmar que a CGU não divulgara o montante em dinheiro envolvido nas transações, mas apenas as percentagens dos convênios, com a intenção de fazer crer que as fraudes seriam menores no governo Lula. Segundo a Controladoria Geral da União, a Planam teve a ver em 2000 com 28% dos convênios firmados com prefeituras para a compra de ambulâncias, e esse percentual subiu para 51% em 2002. No governo Lula, a participação da Planam em convênios caiu para 24,39% em 2003 e 16,17% em 2004.

Como as cifras citadas acima, e divulgadas na ocasião, mostram que o montante de dinheiro ficou estável a partir de 2002, fica claro que a divulgação das percentagens não tem nenhum sentido, a não ser que se queira confundir a informação. O corregedor Jorge Hage alega também que no governo Lula foram quitados R$ 19.488.927,00 de restos a pagar de convênios de ambulâncias celebrados em 2002, “o que explica o incremento verificado em 2003”.

Essa conta eu não entendi. Como lembra o deputado Raul Jungmann, um dos membros da CPI, “quem tem a responsabilidade sobre o pagamento é o governo que faz o processo de liquidação da dívida”. O esquema fez o empenho no governo Fernando Henrique, em 2002, e liquidou a dívida no governo seguinte, no primeiro ano da administração Lula.

Portanto, de duas, uma: ou retira-se da conta de 2002 a dívida não paga e acrescenta-se a quantia no ano de 2003, quando ela foi liquidada, ou, como está no quadro divulgado pela CGU, se mantém os empenhos nos anos em que foram feitos, e não se alega os “restos a pagar” como desculpa.

O ministro Jorge Hage também reclama da minha afirmação de que a ação da CGU nas investigações teria sido “secundária e tardia”. Segundo ele, as primeiras constatações de irregularidades na aquisição de ambulâncias foram apontadas pela CGU no segundo sorteio de municípios, ocorrido em maio de 2003. “A sucessão de constatações de irregularidades me levou a pedir pessoalmente à PF a abertura do inquérito, em novembro de 2004”.

Ele admite que o Ministério Público de Mato Grosso já estava, antes disso, em 2002, investigando o grupo Planam com a Receita Federal, a partir de questões tributárias, mas argumenta que não era do seu conhecimento. Afirma também que as ações da Polícia Federal e da CGU não foram “secundárias”, e pergunta: quem traçou a estratégia de investigação? Quem analisou as informações colhidas nas escutas? Quem analisou os documentos apreendidos? Quem demonstrou documentalmente as irregularidades nas licitações vencidas pela Planam? “Todas as ações de investigação foram desenvolvidas em articulação entre a Polícia Federal e a CGU”, afirma.

Admito que usei o termo errado ao chamar a atuação da CGU de “secundária”, embora reafirme, com base no depoimento de membros da CPI, que o papel fundamental na investigação foi do Ministério Público de Mato Grosso e da Justiça Federal daquele estado. A atuação da CGU não foi nem desprezível como dei a entender, nem a Corregedoria teve a primazia das investigações, como o governo quer passar a idéia. Mas, como diz o deputado Fernando Gabeira, outro membro da CPI, essa é uma discussão bizantina: “Não estamos na Copa Brasil da Corrupção. Levar o debate para esse lado interessa muito à sucessão presidencial, mas na verdade não esclarece muito”.

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